quarta-feira, novembro 14, 2012

Doclisboa'12: Tomorrow we Move, Chantal Akerman


Crítica por: André Guerreiro

Primeiramente, é importante congratular o DocLisboa e a Cinemateca (embora esta mereça um agradecimento vitálicio pela mera existência), pela oportunidade incrível que é a revisitação da obra integral de tão importante cineasta como Chantal Akerman .
Embora estivessemos a referir-nos à obra integral de Chantal, nunca pensariamos estar perante uma obra em particular que fosse tão integral quanto esta, no que diz respeito à sua falsa digestão. Para quem apenas tinha tido o prazer de ver Je, Tu, Il, Elle e Le Rendez-vous de Anna anteriormente a este ciclo, filmes caracterizados por longos e introspectivos silêncios, reflectindo alguma falta de sentido e direcção das personagens que serviam um propósito maior, de ilustração de algum vazio existencial do ser humano e, consequentemente, das relações que estabelecem entre si, nunca imaginaria ver um filme deste género, uma comédia ritmada, que ameaça tornar-se em musical a cada segundo. Embora tal nunca chegue a acontecer, e as palavras nunca cheguem a ser cantadas, ainda imperam, e são o maior veiculo de comunicação do filme.

Para além deste inesperado choque térmico de mood fílmico, começamos progressivamente a habituar à substituição da crueza  flagrante dos anteriores filmes para uma mais ligeira abordagem ao que podemos considerar problemas clássicos constantes da obra de Chantal Akerman, o isolamento do ser humano, quer face à plasticidade das relações, quer em relação ao isolamento como uma necessidade, para a prossecução de um determinado objectivo artístico. 
Objectivamente, temos a história de uma mulher-Catherine – que, na direcção inversa à uterina, muda-se para o duplex da filha Charlotte, devido à morte do marido. Consigo traz uma quantidade desproporcionada de bagagem, quer física quer emocional (sendo que a mala com que não dispensa dormir, repleta de antigos bens domésticos do marido, como cuecas e maquina de barbear, transformadas em preciosas memórias pelo toque de midas mental no sobrevivo que a morte constitui, representa bem a união destas duas dimensões), que desorganiza a vida da filha. Quando o que a filha mais precisa é uma reclusão artística, por não estar a conseguir escrever o livro erótico que lhe está encomendado. Por mais que procure no mundo que a rodeia o erotismo que lhe falta na criação mental, a mãe é uma das únicas fontes que rejeita, pelo facto na hierarquia feminina que definiu tacitamente para ela, surgir  primeiro mãe antes que mulher de plenos direitos.  Esta demonstração da sexualidade latente ser corolário óbvio de ser humano (isto já seria obvio pela nossa existência ser um extravasar dessa sexualidade latente, pondo a questão em eufemismos crípticos), surge logo na primeira cena do filme: ouvimos Catherine, desde fora de plano, a dar instruções relativamente ao transporte do piano para a sua nova casa, em tom ansioso.Quando a transladação se dá de forma bem sucedida altera-se o registo da voz, e a mudança para pequenos gritos de excitação combinada com os picos do sismógrafo respiratório dão origem a uma não-tão-subtil-assim analogia com um orgasmo.

 A diferença entre fuso horário de vida e necessidades entre as duas mulheres gera uma outra necessidade em Charlotte: a da mudança. Tal predisposição encontra uma real oportunidade prática quando esta conhece Popernick, agente imobiliário. Como eventualmente se torna óbvio, este é outros pontos absolutamente essenciais do filme (e tematicamente, como já referido, do cinema de Chantal): a mudança, o acto de procura de uma casa representam figuradamente o sentimento de exílio permanente, e a importante correlação entre o local de habitação e a identidade pessoal e cultural do sujeito. Tais realidades são evidenciadas em vários momentos centrais do filme, tais como o da descoberta de um apartamento decente para Charlotte viver, mas que devido à desinfecção que foi alvo, emana um cheiro que despoleta recordações das camaras de gás dos campos de concentração em Popernick, sobrevivente do Holocausto. Outro importante exemplo dá-se quando Cathrine e Charlotte tentam vender o duplex e surgem todo o tipo de casais, que representam o positivo e negativo das relações permanentes, tal como representam o facto da mudança de casa significa uma alteração das circunstâncias de vida e do relacionamento (Why put a new adress on the same old loneliness?, cantam os Songs:Ohia, e adequa-se perfeitamente, embora não estando na banda sonora do filme). Todas estas pessoas e relações são alegorias, mas complexas e reais, ao ponto de não parecerem carregar o peso do estereótipo fácil normalmente associado à comum alegoria. Desde o casal que em nada concorda mas que tem medo de existências não compartilhadas; a uma mulher grávida infeliz com a sua situação e com o seu overly-sexual marido; ao casal absolutamente neurótico que julga milimetricamente todos os elementos da casa, e imagina-se, cita leis e regulamentos. Engraçado se torna quando todas estas figuras se juntam e tentam cumprir a normalidade social.
Com todas estas camadas de alguma infelicidade doméstica, dos seus apêndices relacionamentais e da sua indissociável habitação, alguns padrões de felicidade e mudança de sorte aparecem também. Porque, tal como a casa, talvez amanhã encontremos algo melhor, talvez amanhã possamos ser felizes, onde quer que seja.

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