Crítica por: André Guerreiro
Primeiramente, é importante congratular o
DocLisboa e a Cinemateca (embora esta mereça um agradecimento vitálicio pela
mera existência), pela oportunidade incrível que é a revisitação da obra
integral de tão importante cineasta como Chantal Akerman .
Embora estivessemos a referir-nos à obra integral de Chantal, nunca
pensariamos estar perante uma obra em particular que fosse tão integral quanto
esta, no que diz respeito à sua falsa digestão. Para quem apenas tinha tido o
prazer de ver Je, Tu, Il, Elle e Le Rendez-vous de Anna anteriormente a este
ciclo, filmes caracterizados por longos e introspectivos silêncios, reflectindo
alguma falta de sentido e direcção das personagens que serviam um propósito
maior, de ilustração de algum vazio existencial do ser humano e,
consequentemente, das relações que estabelecem entre si, nunca imaginaria ver
um filme deste género, uma comédia ritmada, que ameaça tornar-se em musical a
cada segundo. Embora tal nunca chegue a acontecer, e as palavras nunca cheguem
a ser cantadas, ainda imperam, e são o maior veiculo de comunicação do filme.
Para além deste inesperado choque térmico de mood fílmico, começamos
progressivamente a habituar à substituição da crueza flagrante dos anteriores filmes para uma mais
ligeira abordagem ao que podemos considerar problemas clássicos constantes da
obra de Chantal Akerman, o isolamento do ser humano, quer face à plasticidade
das relações, quer em relação ao isolamento como uma necessidade, para a
prossecução de um determinado objectivo artístico.
Objectivamente, temos a história
de uma mulher-Catherine – que, na direcção inversa à uterina, muda-se para o
duplex da filha Charlotte, devido à morte do marido. Consigo traz uma
quantidade desproporcionada de bagagem, quer física quer emocional (sendo que a
mala com que não dispensa dormir, repleta de antigos bens domésticos do marido,
como cuecas e maquina de barbear, transformadas em preciosas memórias pelo
toque de midas mental no sobrevivo que a morte constitui, representa bem a
união destas duas dimensões), que desorganiza a vida da filha. Quando o que a
filha mais precisa é uma reclusão artística, por não estar a conseguir escrever
o livro erótico que lhe está encomendado. Por mais que procure no mundo que a
rodeia o erotismo que lhe falta na criação mental, a mãe é uma das únicas
fontes que rejeita, pelo facto na hierarquia feminina que definiu tacitamente
para ela, surgir primeiro mãe antes que
mulher de plenos direitos. Esta
demonstração da sexualidade latente ser corolário óbvio de ser humano (isto já
seria obvio pela nossa existência ser um extravasar dessa sexualidade latente,
pondo a questão em eufemismos crípticos), surge logo na primeira cena do filme:
ouvimos Catherine, desde fora de plano, a dar instruções relativamente ao
transporte do piano para a sua nova casa, em tom ansioso.Quando a transladação
se dá de forma bem sucedida altera-se o registo da voz, e a mudança para
pequenos gritos de excitação combinada com os picos do sismógrafo respiratório
dão origem a uma não-tão-subtil-assim analogia com um orgasmo.
A diferença entre fuso horário de vida e necessidades entre as duas
mulheres gera uma outra necessidade em Charlotte: a da mudança. Tal
predisposição encontra uma real oportunidade prática quando esta conhece
Popernick, agente imobiliário. Como eventualmente se torna óbvio, este é outros
pontos absolutamente essenciais do filme (e tematicamente, como já referido, do
cinema de Chantal): a mudança, o acto de procura de uma casa representam
figuradamente o sentimento de exílio permanente, e a importante correlação
entre o local de habitação e a identidade pessoal e cultural do sujeito. Tais
realidades são evidenciadas em vários momentos centrais do filme, tais como o
da descoberta de um apartamento decente para Charlotte viver, mas que devido à
desinfecção que foi alvo, emana um cheiro que despoleta recordações das camaras
de gás dos campos de concentração em Popernick, sobrevivente do Holocausto.
Outro importante exemplo dá-se quando Cathrine e Charlotte tentam vender o
duplex e surgem todo o tipo de casais, que representam o positivo e negativo
das relações permanentes, tal como representam o facto da mudança de casa
significa uma alteração das circunstâncias de vida e do relacionamento (Why put
a new adress on the same old loneliness?, cantam os Songs:Ohia, e adequa-se
perfeitamente, embora não estando na banda sonora do filme). Todas estas
pessoas e relações são alegorias, mas complexas e reais, ao ponto de não
parecerem carregar o peso do estereótipo fácil normalmente associado à comum
alegoria. Desde o casal que em nada concorda mas que tem medo de existências
não compartilhadas; a uma mulher grávida infeliz com a sua situação e com o seu
overly-sexual marido; ao casal absolutamente neurótico que julga
milimetricamente todos os elementos da casa, e imagina-se, cita leis e
regulamentos. Engraçado se torna quando todas estas figuras se juntam e tentam
cumprir a normalidade social.
Com todas estas camadas de alguma infelicidade doméstica, dos seus
apêndices relacionamentais e da sua indissociável habitação, alguns padrões de
felicidade e mudança de sorte aparecem também. Porque, tal como a casa, talvez
amanhã encontremos algo melhor, talvez amanhã possamos ser felizes, onde quer
que seja.
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