segunda-feira, maio 23, 2011

"L'ENFANT" (2005), de Jean-Pierre e Luc Dardenne

Tive a honra e o prazer de ser um dos oradores no debate de terça passada sobre o filme “L’Enfant”, inserido no ciclo “Justiça no Cinema”, promovido pela Associação Jurídica do Porto.
Na altura, escrevi, para o efeito, uma crítica ao filme, que agora deixo aqui. Por falta de tempo, não a retoquei, o que é pena porque do debate guardei (aprendi!) novas perspectivas sobre o filme.


Tudo começa, em L’Enfant, pelo título. Quem é, de facto, a criança neste filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne?

Ao contrário do que uma primeira leitura rápida do filme possa sugerir, a criança sobre quem a câmara dos franceses se centra é, afinal, Bruno (Jérémie Renier, o miúdo de La Promesse), o pai de um bebé recém-nascido, fruto da relação com a sua namorada Sónia (Déborah François). Na verdade, esse bebé - que nem “criança” pode ser ainda, em boa verdade... - é apenas o leitmotiv operador de um filme que confronta a passagem da juventude à idade adulta e a pré-suposta aquisição de qualidades que essa passagem, de acordo com a normalidade das coisas, impõe. Falo em “normalidade” e não é à toa; na verdade, em todo o filme, essa normalidade (composta por regras, rotinas, disciplina), própria da sociedade em que todos vivemos, está em permanente crise. O ambiente em todo o filme é esse mesmo: o de trangressão das regras, o qual se afirma, cruamente, no quotidiano de Bruno, um jovem dos subúrbios belgas que sobrevive de pequenos roubos e biscates que vai fazendo com a ajuda de uns cúmplices ainda mais novos que ele.


Bruno é o Peter Pan desses subúrbios cinzentos e desgarrados por onde circula, levando um estilo de vida avesso àquilo que a sua idade já faria supor: responsabilidade e maturidade. Até a sua própria fisionomia sugere isso mesmo: a face imberbe e com acne, os cabelos loiros, rebeldes, de criança contrastam a todo o tempo com o seu rosto adulto de traços duros. Mesmo quando confrontado com o nascimento do seu filho, Bruno parece nunca se aperceber bem do que isso significa – pense-se só como Bruno não o olha (não o ) uma única vez. Esse alheamento (ou fuga voluntária?) por completo ao mundo e às responsabilidades faz de Bruno uma criança-grande, alguém cujo corpo cresceu demasiado para o espírito infantil e despreocupado. Mas dizer isto é já dar por certo o facto de, na vida, obedecermos todos a um certo processo naturalístico cronológico: nascemos bebés, tornamo-nos crianças, depois jovens, mais tarde adultos. E é dar por certo, também, que de uma fase para outra nos vamos tornando cada vez mais responsáveis e maduros (ou pelo menos é isso que as pessoas esperam de nós). No fundo, cada vez mais… adultos. Ora, neste ponto (que aqui é “todo” o ponto), o filme dos irmãos Dardenne parece querer constituir uma espécie de resgate a essa normalidade das coisas, ou, visto de outra perspectiva, parece querer resguardar um certo lugar de liberdade e de sonho para os que não se acomodam às “regras do jogo”. Porque é que “tem” de ser assim? Porque não podemos ser crianças despreocupadas por mais algum tempo? Bruno não quer crescer e a câmara não faz juízos de valor – expressão máxima de um cinema simultaneamente perscrutador e tolerante com o indivíduo. Como toda a arte deve ser.


Esta recusa da “perda de inocência”, como que um grito contra o sistema, contra a ordem natural das coisas, faz com que vejamos Bruno e os seus pequenos cúmplices (um deles é mecânico, o que mais uma vez joga com a ideia de criança-adulto) como uma espécie de “excluídos” (ou esquecidos?) à margem da sociedade. Essa ideia é acentuada por um sem-número de pormenores, nomeadamente o lúgubre esconderijo ((faz lembrar a toca dos amigos de Peter Pan) junto ao rio onde se encontram, longe de tudo e de todos; o facto de, no registo civil (lugar de autoridade, burocracia, normatividade), Bruno e Sónia darem ao bebé o nome de “Nicolas”, mas cá fora (no “seu” mundo) o chamarem sempre de “Jimmy”; ou ainda pela impressiva tirada de Bruno que, quando confrontado por Sónia com uma proposta de emprego, dispara: “Trabalhar é para os cretinos”. A dita normalidade, a responsabilidade e tudo o mais são, portanto, para os “cretinos” – nisto reside a completa subversão dos termos com que estamos habituados a viver em sociedade.



Os cenários de ruas e estradas onde os carros passam a alta velocidade, em que grande parte do filme é rodado, só acentuam a sensação de precariedade e marginalidade em que vivem as personagens, como que se o mundo lhes passasse ao lado, muito rapidamente e sem dar por eles.
São pouquíssimas as filmagens em interiores e, quando as há, elas decorrem sempre em locais anónimos e de passagem e aonde as personagens não pertencem (o hospital, a esquadra da polícia, etc.), razão pela qual sai reforçada a ideia de serem as personagens, à sua maneira, uma espécie de “sem-abrigo”, desenraizadas e frágeis. Também o som, onde a captação do mais ínfimo ruído (conversas de rua, buzinões, motores, telemóveis, etc.) é uma constante, contribui para uma atmosfera de um anonimato generalizado em que as pessoas se encontram desconectadas umas das outras. E por aqui se vê o “realismo” que é comum apontar-se ao cinema dos Dardenne (que começaram no documentário, note-se).


Ao contrário daqueles que, como já li, afirmam não ser intenção dos Dardenne fazer qualquer censura à “transacção” (e uso o termo propositadamente, como provocação) que Bruno faz (eles estariam até a ser condescendentes, dizem), penso ser essa uma visão das coisas que, pretendendo-se humanista, se esquece do essencial: há um bebé e há um pai que o vende, como vende as coisas que rouba. Ignorar isso é esquecer o alerta que o filme lança: o da reificação da pessoa nos tempos em que vivemos e, com ela, o esvaziamento de qualquer sentido de ética. Afinal de contas, onde fica o Amor entre um pai e um filho? É disto que se trata. Embora, é certo, os Dardenne não se sirvam da câmara para moralismos fáceis, antes se interrogando profundamente sobre o que leva a tudo isto. Mais perguntas do que respostas, claro.


Esse esvaziamento é expresso num dos diálogos mais fortes de toda a fita, aquele em que Bruno, interpelado por Sónia, que lhe pergunta onde se encontra o bebé, responde, com naturalidade: “Vendi-o. Depois podemos fazer outro, não?”. Esta ausência de qualquer sentido ético ou moral (e, com ele, de qualquer sentimento de culpa) transcende a personagem de Bruno: ela quer representar a anomia e o eclipse de valores (a pessoa, a família, temas, aliás, recorrentes na filmografia destes autores) da sociedade pós-moderna do vale-tudo: a sociedade em que se vende um filho para se ganhar uns trocos. E ela não nos é distante: é a mesma onde se fazem concursos televisivos em que os participantes são indivíduos obesos que terão que “sofrer” para se “transformarem” naquilo que a sociedade dita, qual Grande Timoneira, como aceitável e meritoso. Triste, mas é assim.


As últimas cenas do filme, subsequentes ao roubo (até este parece aqui uma pequena partida de crianças…) de Bruno e Steve, são de uma enorme comoção. É porque o roubo corre mal que Bruno vai, finalmente, assumir a responsabilidade dos seus actos, tornando-se inevitável falarmos aqui de redenção.
A derradeira cena entre Bruno e Sonia (que traz à memória, como já alguém escreveu, a cena final de Pickpocket, de Robert Bresson) é o contraponto de uma das primeiras do filme (ver primeira fotografia), em que Bruno e Sonia brincam alegremente numa estação de serviço como duas crianças. De facto, ela simboliza como a partir daí a inocência ficou para trás, como esse tempo acabou.

L'Enfant venceu a Palma de Ouro em Cannes, em 2005.

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