domingo, março 14, 2010

Para além da Sophie Marceau como veio ao mundo



Al di là delle nuvole (“Para Além das Nuvens”, em português), de 1995, foi o primeiro filme que vi de Michelangelo Antonioni que não me encheu os olhos. E por esse carácter inédito (e supreendente, pela enorme admiração que tenho por Antonioni) é que decidi escrever algo sobre o filme.
“Encher os olhos” não é porém a expressão mais correcta, se tomada à letra: é que este filme de Antonioni, na linha dos seus grandes filmes, tem uma fotografia espantosa e planos demorados de uma beleza impressionante. Por isso mesmo, visualmente falando, é que este filme me encheu, afinal, os olhos; todavia, já não me enche os olhos quando vacila claramente numa outra vertente que Antonioni sempre dominou mas que não domina (ou concretiza) neste filme: a narrativa.
Tendo como tema central o Amor, “Para Além das Nuvens” apresenta-nos quatro fragmentos, quatro slides, do que é ou pode ser uma relação amorosa: o seu início (mais ou menos titubeante, mais ou menos espontâneo); a sua ocasionalidade, expressa numa relação inconsequente ou em algo mais sério; as suas vicissitudes (a traição, a saudade, o medo do abandono, a separação); e a sua impossibilidade absoluta.
“É ou pode ser”, disse eu, pois da forma como esses quatro fragmentos nos são mostrados, não chegamos a ter a certeza da sua estabilidade, isto é, em nenhum deles (com a excepção do último) podemos dizer assertivamente que estamos perante o início, o meio ou o fim de uma relação. Com efeito, Antonioni não o permite na forma como corta abruptamente as cenas, deixando sempre uma porta aberta para um hipotético desenrolar futuro da situação - a não ser no tal último fragmento (que bem podia ter sido filmado por Godard), onde, ainda assim, a impossibilidade absoluta de uma relação resulta, não das pessoas e suas idiossincrasias (como nos três primeiros), mas de um elemento externo, transcendente às relações humanas.
A meu ver, a grande falha nesta observação quadripartida que Antonioni faz, é flagrante: a falta de coerência narrativa ou de concretização (repare-se que nem estamos a falar de qualquer coisa como um “encadeamento lógico”) entre as quatro peças. Que, ao fim ao cabo, sendo estas, podiam ser quaisquer outras (dentro do tema “Amor”, entenda-se). Se em conjunto, as quatro grandes cenas do filme se perdem, não é, como seria de esperar (e assim o esperou Antonioni, suponho), o papel de um realizador (interpretado por John Malkovich) em périplo buscando novas sensações (Malkovich diz a certa altura qualquer coisa como: “Para que vos falo eu disto? Não sou filósofo; ao contrário deles, sempre me agarrei às imagens”) como fontes de inspiração para novos filmes, que consegue unir e fazer funcioná-las como um todo. Pelo contrário, Malkovich parece a certa altura um ser estranho ao filme, como que um guru que vai aparecendo de cada vez que é chamado para fazer a transição entre as cenas e comentá-las poeticamente. Mais interessantes do que esses comentários, são as impressões introspectivas que Malkovich faz da sua profissão enquanto realizador de cinema. Sobretudo nos últimos minutos do filme em que Malkovich fala da impossibilidade inexorável do realizador em transmitir ao público a primeira imagem, a originalíssima imagem que concebeu, e que sempre será sujeita aos sucessivos (e inevitavelmente deturpadores) filtros de quem as observa. Esta angústia - que parece-me a mim ser já o Antonioni-realizador em voz off -, comum a tantos outros processos criativos (na literatura ou na pintura, por exemplo), fecha de forma poderosa um dos filmes menos coesos de Antonioni que já vi, e que, sublinho, se deve sobretudo à falta de coerência ou identidade narrativa entre os quatro grande fragmentos sobre o qual o filme gravita. Isto porque visualmente, como também já disse, “Para além das nuvens” é outra “bomba” de Antonioni: belo, belo, belo.
No fim de contas, é este um duplo exercício pessoal de Antonioni: estético (visualmente falando) e reflexivo no que toca ao Amor e às suas diversas flutuações nas relações humanas. Esse cariz “pessoal” da reflexão talvez acabe por explicar de certa forma a ausência de preocupação em fundir as quatro histórias numa só história mais convencional e coerente.
Recorde-se ainda que este é possivelmente um dos filmes da história do cinema que mais vultos reuniu no mesmo espaço (John Malkovich, Sophie Marceau, Fanny Ardant, Jean Reno e a belíssima Inês Sastre, entre outros (!)), e a que se soma o argumento original da autoria de Antonioni em parceria com Wim Wenders (!). A contra capa da minha velhinha cassete VHS e o IMDB falam também da interpretação de Marcello Mastroianni e de Jeanne Moreau, mas eu devo ter estado desatento porque não os apanhei em lado nenhum.
Último suspiro para dizer que a música do filme, mormente os pianos, é, em geral, tão melíflua, que, de tão desfasada da fita, chega a ser de uma pieguice confrangedora (mas o Amor é uma pieguice confrangedora e melíflua e nós gostamos, por isso está tudo bem).

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