Entretanto lembrei-me que já escrevi um breve comentário sobre Days of Being Wild. Por isso mesmo, por não andar com muito tempo, e ainda porque o Pedro Ramires (que apresentou o filme) também escreveu algo sobre o filme (originalmente aqui), creio que se dispensa bem o meu contributo. Fica então o do Pedro.
"Dias Selvagens é o segundo filme de Wong Kar-Wai e, como todos os filmes de Wong Kar-Wai, é dolorosamente bonito.
Este filme passa-se entre Hong-Kong e as Filipinas e é sobre Yuddy, e Yuddy vive como um pássaro selvagem; um pássaro ferido que faz da sua passagem pela vida o mesmo que um furacão: gera e abandona destroços moribundos à sua volta. É contra a sua natureza abrandar, reflectir, reparar os danos; e ao longo do filme, os ponteiros dos inúmeros relógios sempre presentes, e os seus tiquetaques ansiosos relembram-nos tanto a passagem irredutível do tempo como o crescente desespero do seu coração.
Mas se a passagem do tempo, e a crescente desesperança a ele inerente está sempre espectralmente presente ao longo do filme, Kar-Wai também constrói, filma e capta com extraordinária subtileza ambientes intimistas, poéticos, ferozes, em harmonia perfeita com o estado de espírito dos que neles vivem. Hong-Kong aparece assim como um conjunto de sombras, becos sem saída, ruas tortuosas, frias; um ambiente melancólico provocado pela civilização que só é totalmente percebido nos acordes das guitarras dos Índios Tabajaras.
É lá que Yuddy vive com a mãe adoptiva, Rebecca, que rejeita revelar-lhe a identidade da mãe biológica porque sabe que ele iniciará a sua busca e, pior do que abandonar Rebecca, a esquecerá. Yuddy ao longo do filme rejeita e magoa as mulheres com quem se relaciona por vingança – da mãe biológica, que o abandonou, e da mãe adoptiva, que lhe revelou a condição (de adoptado) mas lhe sonegou a identidade daquela.
A primeira amante de Yuddy, Li, é também a mulher que ele mais amará. É com ela que, logo no início do filme – um início maravilhoso –, ele fixa um minuto no tempo, um minuto que será só deles e do qual eles estarão a cada segundo mais distantes. Aquando abandonada, a fragilidade nostálgica desta mulher, perturbantemente bonita, faz-nos pensar que irá quebrar; mas tal, nunca acontece – a ternura de um sorumbático polícia evita-o, e ela volta a suportar a ausência do homem que não esquece.
O mesmo sucederá com a segunda mulher, Mimi, também ela amada e abandonada. Mimi, porém, não se resigna ao afastamento, e usará o interesse que produz num jovem amigo de Yuddy para iniciar a inconsequente procura deste. Kar-Wai antecipa-nos isso no fim de uma prodigiosa cena: quando Yuddy deixa Mimi, esta vai ao encontro de Li – na procura de Yuddy – e, depois de uma desesperada discussão, vemos Li de pé à frente de um portão gradeado, que ultrapassou, e Mimi por detrás de uma rede, incapaz de a largar.
Yuddy abandona Mimi quando Rebecca (a mãe adoptiva), prestes a partir com um jovem amante, revela a Yuddy a identidade da sua mãe biológica. É então que Yuddy inicia a sua fatal viagem às Filipinas, onde nova rejeição por parte da mãe biológica, e todo o vazio que se abre com tal rejeição, o vai levar à conclusão da espiral auto-destrutiva que foi a sua vida; ou, melhor, a descobrir que nunca viveu, “pois estava morto desde o início”.
Sempre percorrido pelo desalento, pela desventura, pela perda, o filme termina com uma sequência tanto fabulosa como curiosa: câmara-fixa, vemos um jovem (que aparece pela primeira vez no filme), no seu quarto, enquanto meticolosamente se apruma (presumivelmente) para um encontro. Esta espantosa sequência continua em In the mood for love e 2046, esses filmes perfeitos onde a beleza é intoleravelmente asfixiante".
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