Uma estação de comboios no norte de Inglaterra. Um comboio, movido a vapor, parece passar mesmo em frente ao espectador; momentos depois, outro atravessa a plataforma na direcção contrária. Nenhum teve tempo de parar, mas por um fugaz momento, despercebido, eles encontram-se. A sequência que dá título à fita concentra o simples enredo deste filme, em que duas pessoas encontram inesperadamente o seu grande amor, apenas para descobrir que as suas vidas caminham em sentidos opostos. Laura (Celia Johnson) e Alec (Trevor Howard) são casados – com outras pessoas. O seu jovem amor permanece tão incompleto como a sua existência quotidiana, à qual retornarão após o seu romance proibido.
Apesar de a história não ir muito para além disto, muitos ainda consideram este clássico britânico o maior filme romântico alguma vez feito – uma espécie de “Casablanca” sem Casablanca, uma trágica narrativa amorosa sem os Nazis, a Resistência ou a Guerra. Os protagonistas não são estrelas, mas são profundamente convincentes nos seus papéis. Ela é uma vulgar dona de casa que nunca poderia ter imaginado tal situação; ele é médico, decente, meigo. Até os mais pacatos cidadãos de classe média têm direito a um drama a sério.
O quarto filme de David Lean agarra numa história banal e transforma-a numa experiência intensa. A película é baseada em “Still Life”, uma peça de um acto escrita em 1936 por Noël Coward. Por ter sido originalmente pensada para teatro, toda a acção se desenrola numa loja de chás em Milford Junction, onde Laura e Alec inicialmente se encontram. Em colaboração com Lean, Coward expandiu a história. O casal encontra-se uma vez por semana, sistema ditado pelo horário do comboio. Vão ao cinema, passeiam, e juntam-se secretamente no apartamento de um amigo. E depois de cada vez, Laura regressa a casa, aos seus filhos e ao seu preocupado mas aborrecido marido, Fred (Cyril Raymond). Fred adora fazer palavras cruzadas, e uma vez, a palavra “romance” cruza-se com a palavra “delírio”. Laura conhece este tipo de delírio, desde os primeiros momentos de selvagem alegria até à consciência opressora do perigo, culpa e desonestidade. Ela nunca poderia contar a Fred sobre o seu affair, embora não desejasse mais nada: “It’s awfully easy to lie when you know that you’re trusted implicitly. So very easy, and so very degrading”.
O monólogo interior de Laura, a sua muda confissão ao marido, compensam em emoção a ausência de espectacularidade das imagens - nunca vemos mais do que um beijo. A audiência já está avisada do trágico final, antecipado pela voz trémula de Laura, pois o filme começa com os últimos dolorosos momentos, antes de o apito do comboio os separar para sempre. Este inteligente truque dramatúrgico é um dos instrumentos favoritos de Lean: voltou a usá-lo em “Lawrence da Arábia” (1962), quando o protagonista morre na cena inicial. Embora pudéssemos esperar que tal fosse distanciar o espectador dos eventos subsequentes, acontece o oposto: somos conduzidos directamente ao coração do drama, à confusão mental de Laura, e à compreensão de que esta oportunidade perdida irá assombrá-la até ao fim dos seus dias. Esta divisão é também expressada através de uma incongruência estilística deliberada: Brief Encounter é um filme noir romântico, filmado em locais inóspitos como a estação de comboios, pouco iluminada e obscurecida pelo vapor das carruagens que partem – um dos motifs preferidos de Lean. O elemento romântico consiste quase exclusivamente no Segundo Concerto para Piano, de Rachmaninov, ponto alto da banda sonora. Nem todos sucumbirão a esta perfeita simbiose entre som e imagem, dissolvendo-se em lágrimas; de facto, a luta devastadora de Laura com a sua consciência tem sido parodiada quase tanto como a cena do aeroporto em “Casablanca”. Mas David Lean tomou a decisão certa ao localizar esta história entre guerras. Apenas a Segunda Guerra propiciou a evolução social e moral que tornou o adultério tão-somente equacionável para a maioria das pessoas. Para Alec e Laura, foi tarde demais.
terça-feira, março 17, 2009
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5 comentários:
boa crítica :)
Grande filme.
Não está escrito, mas aproveito para acrescentar dados técnicos do filme:
UK; 86min; Preto e Branco; Palma de Ouro em Cannes ‘46
Realizador: David Lean (1908 – 1991)
Argumento: Noël Coward, David Lean
Com Celia Johnson e Trevor Howard
A crítica é uma tradução minha do artigo de Philipp Bühler, em “Movies of the 40’s” (edição Taschen por Jürgen Müller).
A principio fui so pelas almofadas que o guilherme, penso eu, propagandeava a porta do orfeao .. dao um ar fofinho a coisa :p
Foi a primeira vez que fui assistir a um filme do cineclube e nao superou as expectativas porque naos as tinha, infelizmente desconhecia esta perolazinha na faculdade :p (apesar de eventualmente parecer, nao, nao estou a chamar ostra ao guilherme )
Gostei do filme, gosto de cinema a preto e branco e dos anos pos I Guerra e daquela peculiar forma de expressao dos actores de entao como chamava a atençao o afavel senhor que fez a critica antes da projecçao do filme , Philipp Bühler acho eu.. Bom texto/relato do filme, mas além da questao da musica como uma especie de conector entre a realidade e a consciencia da personagem, ha um aspecto que julgo tornar este amor tao intenso a vontade constante e perpetua de se unirem quando sabem que tal e social e moralmente reprovavel, vêm esta relaçao como uma fuga das suas vidas triviais, projectam nela mais do que realmente é.. No fundo estes amantes desconhecem-se , amam no outro as ficções q as suas proprias mentes criam ...
Gostei imenso e prometo voltar :p
Ana Cristina Sousa
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Não, o Guilherme não julgou que lhe estivesses a chamar ostra.
E mesmo que julgasse não levaria a mal. O Guilherme é bastante compreensivo...
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