A premissa deste filme japonês de realizador iraniano (Amir Nadeni) não podia ser mais interessante: a de um homem cujo amor ao cinema o leva a pôr em risco a própria vida
Shuji é um jovem (aspirante a) realizador em dificuldades económicas, cuja principal ocupação é a projecção de filmes no terraço do seu prédio, para uma mão-cheia de fiéis espectadores. Cartazes de filmes e realizadores e programas de sessões forram o apartamento de alto a baixo, cobrindo paredes, tecto, portas, até janelas, como se toda a luz e ar que entrassem fossem filtrados pelo cinema.
Nos tempos livres, empunha um megafone pelas ruas de Tóquio, gritando para as multidões apáticas e apressadas aquilo que todos sabem mas se cansaram de dizer: o cinema de autor, enquanto criação e arte, perdeu o lugar para o cinema de mero entretenimento, que nasce e morre no espaço hermético dos multiplexes, também porque não está, à partida, destinado à posteridade. A propósito disso, e contra certas ideias feitas de que o cinema autoral é elitista, abstracto e intransponível, Shuji relembra também que o bom, o grande cinema clássico, é intemporal, e se cultiva, se educa, se sensibiliza, também diverte, também entretém; não há necessariamente uma cisão entre os dois mundos.
Esta paixão – fanatismo? - absorvente não lhe permite dedicar-se a qualquer tipo de trabalho, e assim, quando um dia é confrontado com o assassinato do irmão e a herança da sua dívida astronómica para com uma organização mafiosa, Shuji não tem outra hipótese senão vender o corpo de uma forma inusitada, leiloando a face e a integridade, tornando-se um saco de boxe humano, trocando socos por dinheiro.
Para resistir à tortura voluntária e vingar a memória do irmão, Shuji exige que a arena seja o quarto-de-banho imundo onde ele foi morto. Enquanto é espancado, relembra com fervor religioso todos os filmes que exibiu, todas as grandes obras que o marcaram mais profundamente que os golpes que agora lhe infligem. Quando regressa a casa, ao final do dia, adormece no embalo do som da película a ser projectada.
O vermelho-sangue, tom dominante do filme, é pontuado por cenas a preto e branco, em que Shuji se dirige às campas dos grandes realizadores japoneses – Kurosawa, Ozu, Mizoguchi, para lhes prestar homenagem e rezar por inspiração para que consiga criar algo à sua altura, em sua honra e do Cinema.
Apesar disto, “Cut” eventualmente cai na monotonia da violência e na repetição do discurso purista, o que acaba por retirar alguma força à mensagem valiosa que subjaz ao filme – uma metáfora fortíssima dos obstáculos que um criador cinematográfico enfrenta na construção do seu percurso, na criação e divulgação da suas obras, que se torna ainda mais relevante pelo seu pendor autobiográfico, uma vez que o realizador, Amir Naderi, se exilou nos Estados Unidos nos anos '80 e também ele abdicou da sua vida para se dedicar exclusivamente ao cinema.
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