Le Bal (1983) de Ettore Scola: Observações a um baile
Por Francisco Noronha
Talvez já todos tenhamos imaginado pelo menos uma vez como será o início de uma noite num grande espaço de dança frequentado por muita gente. Como será esse espaço sem as pessoas, as roupas, os risos, os cigarros, as maquilhagens, o barulho, os olhares, os copos, … Como será esse espaço sem aquilo que o motiva: pessoas e movimento. Quando me lembro das poucas vezes que presenciei uma situação dessas, recordo o quão surpreendido fiquei pela solidão do local, transformado numa sala silenciosa como tantas outras. O exercício torna-se ainda mais interessante - e faz-nos sentir porventura um pouco idiotas - se pensarmos que qualquer sala, sem gente, é obviamente isso mesmo e nada mais: uma sala como tantas outras. Sem nada nem ninguém.
Pois bem; Le Bal (1983) satisfaz, logo a abrir, este apetite pelo impensável: acompanhamos na penumbra um homem a percorrer uma sala, ajeitando umas coisas aqui e ali. Repentinamente, acende as luzes. Deparamo-nos então com um salão de dança parisiense anos 80, algures entre o cabaret, o casino e um qualquer concurso televisivo da tv portuguesa anos 90. A câmara dá-nos o salão de frente: o rectângulo para o pé de dança ao meio, um conjunto de cadeiras a ladeá-lo e, acima, quatro ou cinco lanços de escadas de grande comprimento. Olhamos para cima e vemos globos luminosos, enquanto que, um pouco atrás das escadas, nas laterais, os contornos dos degraus superiores e da varanda que dá para o salão se encontram também eles iluminados por um néon muito disco. Por esta altura, já o barman colocou a agulha num disco invocador dos míticos eighties.
Está, então, tudo pronto para o espectáculo: começam a chegar as senhoras, uma por uma, todas elas se mirando escrupulosamente ao espelho para ajeitar um cabelo fora do sítio ou verificar a brancura dos dentes. Todas elas se vão sentando, uma por uma, em cadeiras diferentes. Percebemos então aqui como a música sugere qualquer coisa próxima de uma preparação, um ritual para dar início a… A qualquer coisa próxima de uma missão? Talvez assim o possamos entender quando chegam os homens e se enfileiram como soldados para o ataque ao inimigo. É a vez deles de descerem e se encostarem galantemente ao balcão. Dá-se então início a todo um jogo sedutor de olhares, tiques e preocupações relativamente ao sexo oposto. Aqui compreendemos o que vai mover o italiano Ettore Scola em toda a fita: a atracção e o flirt mútuo entre homens e mulheres (quer serão sempre os mesmos actores). Homens e mulheres que, desde o início, percebemos quererem retratar uma certa diversidade social. Quer em aspectos porventura mais materialistas (na roupa, no bom-gosto ou nos modos), quer em aspectos de índole moral ou psicológica (a mulher lasciva que mostra as ligas; a mulher fria e decidida que chupa o cigarro; a mulher nervosa que à ultima troca os sapatos; ou a paranóica que vai engolindo uns comprimidos à socapa). E o mesmo nos homens.
Toda esta narração altamente descritiva por parte do autor deste escrito é consciente e voluntária: o mesmo seria necessário fazer para avaliar cada momento histórico abordado por Scola num baile que se dança nos anos 30, quando o operariado consubstanciava a sua força na multipolar Frente Popular; nos anos 40, com os bombardeamentos alemães e consequente invasão seguida de libertação; o pós-guerra com o jazz negro importado da América; mais tarde o rock and roll rebelde; e por fim, antes de voltar aos eighties, o ambiente quente das revoltas estudantis francesas dos anos 60. Entre o documentário, o histórico e o musical, Le Bal transforma-se, a meu ver, num intenso (e paciente) exercício de observação. Quer para o realizador, enquanto construtor; quer para o espectador. E, para este último, fará porventura sentido este sensato cliché: Le Bal não é um filme para se ver, mas antes para se observar. E 107 minutos de observação podem ser eventualmente duros para as pestanas. Mas serão, com certeza, um fresco original e curioso de um século.
Como qualquer exercício – neste caso, de observação - Le Bal exige esforço e interesse. Afinal de contas, o mesmo que se exige para se ir dançando no correr dos anos…
Nomeado em 1984 para o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira e vencedor de vários Ursos de Berlim.
Como disse na altura em que fazia a apresentação, assumia as responsabilidades pela escolha do filme... Pelos vistos, não houve responsabilidades para suportar. Pelo menos não todas. :)
Até à próxima sessão!
Francisco.
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