Com duas dezenas de espectadores, "O ESPELHO" foi precedido de uma excelente apresentação introdutória da parte do Prof. Doutor Mário Graça Moura, certamente enriquecedora para todos os que assistiram à obra-prima de Andrei Tarkovsky.
A próxima sessão, que encerra a programação para este semestre, terá lugar no dia 8 de Dezembro, com o filme "SUPERFLY".
Mas os filmes não ficam por aqui!
Quase como uma oferenda natalícia, o Cineclube FDUP realizará uma especial sessão dupla, dia 13 de Dezembro (terça-feira), que contará, ainda, com um pequeno lanche entre os dois filmes (a anunciar brevemente). Será um momento não só para vermos bons filmes, mas também para todos aqueles que acarinham este projecto confraternizarem e trocarem impressões. Estejam atentos!
Aqui fica a crítica do Prof. Doutor Mário Graça Moura ao filme "O ESPELHO" (1975), de Tarkovsky.
CINECLUBE FDUP
SESSÃO 22 NOVEMBRO: "O ESPELHO" (1975), de Andrei Tarkovsky
Andrei Tarkovsky: O Espelho, Prof. Doutor Mário Graça Moura
‘O Espelho’ (1975) é a quarta das sete longas-metragens de Andrei Tarkovsky (1932-1986). Pensado nos anos 60, foi um projecto inicialmente rejeitado pela burocracia soviética. O filme acabaria por ser rodado na década seguinte mas, após o seu visionamento, as autoridades permitiram apenas uma distribuição limitada na URSS e proibiram a exibição no Festival de Cannes (no qual ‘Andrei Rubleev’ (1969) e ‘Solaris’ (1972) tinham sido premiados e ‘Stalker’ (1979), ‘Nostalgia’ (1983) e ‘O Sacrifício’ (1986) viriam a sê-lo). ‘O Espelho’ adquiriu entretanto a reputação de ser o filme mais pessoal – e talvez o mais difícil – de uma obra composta por filmes que não poderiam ter sido feitos por nenhum outro realizador e que são certamente exigentes.
Trata-se de facto, por maioria de razão, de um filme pessoal: baseia-se em acontecimentos reais, vividos pelo realizador e pela sua família. Por sua vez, a representação desses acontecimentos, passados em épocas diversas, é intercalada com a representação de sonhos – claramente sinalizados, no entanto – e com fragmentos de documentários; e a montagem obedece a um princípio de associação de ideias mais do que a uma lógica narrativa. Todavia, a estruturação com base em princípios que, como tem sido observado, remetem para a poesia é característica de outros filmes de Tarkovsky – filmes nos quais, como aqui, encontramos personagens e cenas misteriosas, que parecem resistir inclusivamente a uma interpretação simbólica. ‘O Espelho’ vai mais longe do que os outros filmes do realizador apenas na medida em que, como tem sido assinalado, constitui uma experiência de subjectividade total: os acontecimentos que compõem o filme são-nos apresentados tal como a mente do protagonista os recorda ou imagina. Significativamente, o protagonista (quando adulto) está sempre fora de campo.
Por outras palavras, ‘O Espelho’ é a memória que um homem tem da sua vida (e da vida da sua família) num momento de particular lucidez, em que parece ser capaz de ver ou entender o que antes não tinha visto ou entendido – e o filme está por isso montado de uma forma que reflecte o modo como a memória opera. Esse momento de particular lucidez é, aparentemente, o momento da sua morte, que constitui, como o próprio realizador viria a observar, o único elemento falso do filme – pois o homem em causa é, evidentemente, o próprio Tarkovsky. Para além de vermos o cartaz de ‘Andrei Rubleev’ a sugeri-lo, a mãe do protagonista (quando idosa) é a própria mãe do realizador – a voz do seu pai aparece igualmente, lendo os seus poemas – e grande parte do filme decorre numa casa que é uma réplica da casa da família do realizador, reconstruída no local onde essa casa existia.
A figuração da memória do protagonista apresenta um aspecto particularmente relevante. Há cinco personagens centrais: o protagonista, a sua mulher, o seu filho, a sua mãe e o seu pai, que no entanto está quase sempre ausente. Duas dessas personagens surgem-nos em várias fases da sua vida. Ora a actriz que representa a mulher do protagonista representa também a sua mãe quando jovem – há, aliás, um comentário da mulher sobre a sua parecença com a mãe do protagonista – e o actor que representa o protagonista quando adolescente representa também o seu filho. Por sua vez, a separação do protagonista e da sua mulher, e a dos seus pais, sugerem um paralelo entre aquele e o seu pai. As vidas de algumas personagens – na memória (lúcida) do protagonista – são portanto um espelho de outras vidas. É de resto através de espelhos que em certos momentos se passa do presente para o passado, ou para o sonho, e vice-versa.
Mas há ainda uma explicação adicional para o título do filme. Tarkovsky revelou que vários espectadores lhe disseram que tinham visto no filme a sua própria vida – o que, à primeira vista, é paradoxal, mesmo tratando-se de espectadores russos da mesma geração que o realizador. E no entanto não o é, porque o cinema, ou mais genericamente a arte, podem fazer-nos ver – e podem fazer com que nos vejamos a nós próprios – com uma lucidez particular, tal como sucede ao protagonista de ‘O Espelho’ no momento da sua morte; e essa lucidez pode levar-nos, mesmo estando longe do contexto histórico e geográfico do filme, a reconhecer nas vidas retratadas – que por sua vez espelham outras vidas – a nossa própria vida, passada ou futura. Não por acaso, ‘O Espelho’ começa com uma cena, que pode ser interpretada como uma metáfora do poder do cinema, em que um rapaz gago, através da hipnose, é curado e pode finalmente falar. E uma das sequências fundamentais do filme é um sonho, primeiro relatado e depois magnificamente figurado, sobre a impossibilidade de regressar à casa da infância, ou de recomeçar.
Como sempre em Tarkovsky, a atenção obsessiva ao movimento da câmara e ao som fazem de ‘O Espelho’ uma experiência visual e sonora de uma intensidade rara. Destacam-se, por exemplo, as imagens do vento – algumas criadas com a intervenção de helicópteros – e das gotas de água; ou o uso da luz nas cenas de interiores. Bruegel – de quem um quadro é recriado – e Leonardo da Vinci inspiram algumas das cenas. E o filme acaba com uma sequência verdadeiramente hipnótica, uma das duas ou três mais comoventes da obra do realizador, em que o pai do protagonista pergunta à mãe se prefere ter um filho ou uma filha, enquanto se ouve o início da ‘Paixão segundo S. João’, de J.S. Bach. Depois a mãe olha – por um momento, inclusivamente, olha para nós – e literalmente vemos com ela o sentido da sua vida.
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