CINECLUBE FDUP 1/10/2009
La Notte (1961), de Michelangelo Antonioni
Por: Francisco Noronha
G: Sei o que escrever, mas não como. Estou em crise.
V: És um homem fraco. Eu gosto de festas, (…).
G: Não gostas de mais nada?
V: Sim, de tudo.
Talvez não seja habitual (ou mesmo conveniente…) começar um apontamento cinematográfico referindo um excerto daquelas sinopses que acompanham a contra-capa de uma caixa de um filme. Pois bem, seja-me permitida a audácia:
“Uma análise fria de sentimentos mistos num mundo de tensão crescente entre pessoas ao mesmo tempo tristes e felizes e o modo como convivem entre si”.
A audácia não é gratuita ou despicienda, claro. A citação acima sintetiza, de facto, o que Antonioni transporta de humano para o cinema com
La Notte: pessoas emocionalmente intermitentes e seu relacionamento. A expressão “ao mesmo tempo” é muito importante: em toda a fita, o olhar de Antonioni incide sobre essa convivência contemporânea problemática mas, simultaneamente, tão natural. Para o caso, tão insuportavelmente natural.
Marcello Mastroiani (um ano depois de
La Dolce Vita, diga-se por curiosidade) e Jeanne Moreau interpretam um casal cinzento em crise, (sobre) vivendo numa Milão também ela cinzenta. Uma Milão arquitectonicamente modelada por fachadas gigantescas que acentuam a pequenez e fragilidade das personagens – dos vários planos em que esta ideia nos é transmitida, há um, especialmente preciso, em que Lidia (Jeanne Moreau) é filmada num plano picado junto a um enorme frontão cuja alvura como que a ofusca. A isto se junta um tratamento de imagem cuja coloração (preto e branco) é particularmente arguta no que de deprimente e abafado imprime às personagens e aos espaços físicos em que elas se movem.
Voltando ao casal: é em torno dele que gira a história de
La Notte. Afinal de contas, uma história bem simples: um dia (ou um pouco mais do que isso…) na vida de um casal em fim de linha. Será (só) isto? Bem, para já, será. Acompanhamos então Giovanni, escritor afamado, e Lidia, sua esposa e mulher de espírito, mais do que perturbado, perturbante. Ao longo do dia acompanharemos as suas deambulações, intercaladas com uma incursão solitária de Lídia pelas ruas de Milão. É especialmente nesta incursão, e nas diferentes situações que esta “fotografa”, que nos deixamos levar pela angústia de Lidia – seja com a criança que chora, o relógio estilhaçado, a cena de violência ou, mais libertador, o lançamento dos foguetes. Em todas elas, contudo, um traço é dominante: o rápido desapego de Lídia a tudo o que assiste ou conhece, motivado por um desespero interior de base.
Terá este casal uma segunda oportunidade? Pois bem, isso será desvendado justamente pela
noite, momento onde Antonioni tão bem ilustra o contraste que esta pode sugerir: de um lado a animação, a magia e a sexualidade; do outro lado a solidão, a melancolia e a falta de respostas para as nossas inquietações mais profundas. E é então,
à noite, no fausto de uma festa da burguesia italiana, que Giovanni e Lidia, cada um com o seu flirt de ocasião (bem mais interessante o de Giovanni), irão colocar à prova a sua relação (e a relação com a sua própria consciência). Não arriscarei muito se disser que não é a despropósito que a Mulher sai daqui um pouco santificada…
A noite dá lugar ao dia. E nessa transição há um momento fundamental para este casal e para o filme no conjunto: a madrugada. Momento híbrido mas redentor; obscuro mas apaziguador. Parece ser esta mesma madrugada – também pela longa paisagem verde – que Antonioni vai repescar cinco anos mais tarde em
Blow-Up.
Urso de Ouro em Berlim (1961) e muito jazz (cortesia de Giorgio Gaslini) são outros factores que abrilhantam este
La Notte, considerado por muitos como elemento central de uma trilogia completada por
L’avventura (1960) e
L’eclisse (1962) ou também como
leitmotiv inspirador do monumental
Eyes Wide Shut (Kubrick, 1999).