O outro David Lynch que a maioria de nós desconhece. E do qual não fiquei com grande vontade de conhecer.
Em Busca do Grande Peixe – Meditação, Consciência e Criatividade
Em Julho de 1973, David Lynch tinha 27 anos, uma carreira artística errática (algures entre a pintura e o cinema), uma bolsa de dez mil dólares do American Film Institute e uma primeira longa-metragem encalhada por falta de meios (Eraserhead, futura obra de culto que só completaria em 1977). Um belo dia, entrou num centro de Meditação Transcendental (MT), em Los Angeles, conheceu uma instrutora «parecida com a Doris Day» e tudo mudou. Sentado numa pequena sala, de olhos fechados, Lynch repetiu certo mantra («um pensamento-vibração-som») e «foi como se estivesse num elevador e tivessem cortado o cabo». Ou seja: «Buum! Caí em beatitude – pura beatitude.» E nunca mais quis outra coisa. Desde aquele dia, há três décadas e meia, que o realizador cumpre, sem falhas, o mesmo esquema: «Medito uma vez de manhã e, de novo, à tarde, durante cerca de vinte minutos de cada vez. Depois, vou à minha vida.» Só que com muito mais energia e capacidade criativa, diz ele.
No fundo, a MT é o método através do qual Lynch «pesca» literalmente as ideias para os seus filmes e este livro pretende ser uma explicação prática desse método. Tudo se resume a uma metáfora ictiológica, repetida vezes sem conta: «As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos que ir mais fundo.» Mais fundo, entenda-se, no «oceano de consciência pura e vibrante» que existe dentro de cada ser humano. A julgar pelos exemplos descritos, Lynch domina tão bem esta arte da introspecção que para ele se tornou fácil mergulhar até à Fossa das Marianas do seu Ser (com maiúscula) e arrancar de lá as ideias perturbantes que depois vemos, transfiguradas, no grande ecrã.
Apesar do estilo telegráfico, com irritantes tiques de guru oracular, os capítulos em que Lynch fala da aplicação da MT ao seu trabalho artístico, ou da paixão pelo cinema, ou do entusiasmo pelo vídeo digital, ainda escapam. O problema é que o autor de Mulholland Drive tenta ao mesmo tempo evangelizar o leitor, apelando à sua grande causa: a luta «contra a negatividade», em prol da «paz verdadeira na Terra». O discurso, de tão ingénuo, chega a parecer irónico. Mas não é. Atrás do Lynch perverso dos filmes, esconde-se um insuportável avatar new age.
Quando vi Em Busca do Grande Peixe na secção de Espiritualidades de uma livraria, fiquei chocado. Depois de o ler, porém, acho que é precisamente ali o seu lugar.
autor: José Mário Silva
terça-feira, dezembro 30, 2008
segunda-feira, dezembro 29, 2008
Paraiso da Nostalgia
É o que me ocorre dizer depois de vêr Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore. Não me apetece alongar muito. Até porque é difícil quando a sorrateira emoção ameaça constituir avalanche para os sentidos mais lúcidos.
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quarta-feira, dezembro 24, 2008
Badfellas
Vi ontem pela primeira vez o aclamado Goodfellas (1990), do Scorsese. A melhor coisa do filme foi confirmar no meu interior a minha aversão por filmes sobre a mob. Porque, ao contrário de muita gente, não consigo tirar prazer e gozo da mob em si, enquanto organização. Algo me diz que matar com cinco balázios nos cornos alguém que até aquele dia era o meu irmão de sangue apenas porque ele estacionou mal o carro e levantou suspeitas, tem o seu quê de estranho. E de desagradável, porventura.
Pior, Goodfellas despertou-me muitos deja vus de padrinhos e outros que tais.
Por outro lado lado, se em padrinhos e outros que tais, o relato histórico contextual ainda nos é destacado, e transmitido de uma forma construtiva e interessante, em Goodfellas esse plano é, a meu ver, bastante subalternizado. Quanto ao enredo principal em volta do puto-inocente-depois-membro-da-família Ray Liotta, este é, na minha humilde opinião, tão pouco original que até dá vontade de juntar uns ingredientes para tornar a coisa mais atractiva.
Enfim, vale pelo elenco: Ray Liotta, De Niro (fica-lhe sempre bem o papel de gangster), Paul Sorvino e Joe Pesci (por esta ordem na fotografia).
ADITAMENTO:Depois de escrever e publicar este texto, dei uma vista de olhos pelo google, curioso por saber de outras opiniões sobre o filme. Desde "um dos melhores filmes dos anos 90" a "inspirador de todos os filmes noir póstumos", todos os honrosos qualificativos contradizem a minha apreciação. Eheh... bem, o que posso dizer? Que detesto mesmo a merda da máfia e os filmes sobre ela!
sexta-feira, dezembro 12, 2008
Baraka, por André Silva
O blog do Cineclube volta a contar com críticas de filmes feitas por leitores e cinéfilos. Espero que seja a primeira de muitas.
“Baraka” é um incrivél tele-documentário experimental realizado pelo director norte-americano Ron Fricke. Na língua Sufi, a palavra “Baraka” significa Sopro de vida ou Bênção. Um autêntico poema visual onde as imagens incluem um vasto registo de rituais religiosos, maravilhas naturais, processos de mecanização e produção humana e diversos estilos de vida. O contraste e as metáforas visuais criadas por Ron Fricke provocam reflexão, tranquilidade e inquietação aos espectadores atentos. As músicas aliciantes e os efeitos sonoros contribuem para que Baraka seja uma experiência única e marcante. Baraka é um documentário sobre o homem e a natureza, a sua beleza e diversidade cultural, o contraste humano, as suas semelhanças e a sua própria destruição, enquanto ser incapaz de entender o frenético ritmo social a que a vida se desenrola. È facilmente apreendida a intima e frágil ligação entre todos os homens, resultado da multiplicidade de diferenças religiosas, culturas e linguísticas.
São noventa e seis minutos, sem narração, legenda ou discurso, somente imagens e sons cuidadosamente capturados. Baraka exibe-nos de que forma a raça humana e seus diferentes ciclos de vida estão eternamente vinculados ao ritmo da natureza, fazendo uma surpreendente análise do mundo e de quem nele habita.
Filmado em 152 lugares diferentes, localizados em 24 países, Argentina, Austrália, Brasil, Cambodja, China, Equador, Egipto, França, Hong-Kong, Índia, Indonésia, Irão, Israel, Itália, Japão, Kenya, Kuwait, Nepal, Polónia, Arábia Saudita, Tanzânia, Tailândia, Turquia, e Estados Unidos da América, “Baraka” não tem qualquer história ou enredo. Em vez disso utiliza, não só temas para nos apresentar novas perspectivas, mas também genuínas emoções que nos fazem entrar na mensagem do filme. Não aconselho a visualização deste filme a pessoas confiantes no seu ego, seguras pelo seu egoísmo étnico centralizado, nem com configurações pré-definidas de vida humana ou comportamentos sociais, já que nos é proporcionada uma verdadeira experiência sensitiva e espiritual que leva o telespectador a olhar o mundo de um modo totalmente diferente e de uma forma mais condescendente para com os outros. Baraka permitiu-me ver realidades que nem sonhava existirem, comportamentos sociais que por vezes surgem-nos como irreais, vislumbrar padrões de conectividade cultural, tudo isto num sentido de equilíbrio e proporção de relações internacionais humanas. O meu olhar fugia simplesmente de encontro a outros olhares e caras de pessoas, levando-me a entender a universalidade do espírito humano.
Guardo a triste lembrança de uma enorme lixeira pública na Índia, onde grupos de pessoas procuram incessantemente por qualquer tipo de coisa que lhes permita sobreviver mais um dia, competindo com outros animais. Mulheres e crianças descalças procuram pequenos “tesouros” naquele horrível lugar, onde nenhum ser humano deveria ser obrigado a viver.
Fricke afirma que o objectivo desta obra era ser "uma viagem de redescoberta da própria vida, mergulhando na natureza, na história, no espírito humano e por fim no reino do infinito." Único na sua beleza, sensibilidade e percepção, “Baraka” consegue, ao longo de noventa e seis minutos, e movendo-se na realidade quotidiana de um mundo multifacetado, transmitir-nos uma ideia de tolerância e respeito cultural a que todos deveríamos estar sujeitos.
Mais que uma obra puramente fantasiosa e imaginária, “Baraka” é um filme sobre a vida, um registo sobre a própria Humanidade.
autor: André Silva
“Baraka” é um incrivél tele-documentário experimental realizado pelo director norte-americano Ron Fricke. Na língua Sufi, a palavra “Baraka” significa Sopro de vida ou Bênção. Um autêntico poema visual onde as imagens incluem um vasto registo de rituais religiosos, maravilhas naturais, processos de mecanização e produção humana e diversos estilos de vida. O contraste e as metáforas visuais criadas por Ron Fricke provocam reflexão, tranquilidade e inquietação aos espectadores atentos. As músicas aliciantes e os efeitos sonoros contribuem para que Baraka seja uma experiência única e marcante. Baraka é um documentário sobre o homem e a natureza, a sua beleza e diversidade cultural, o contraste humano, as suas semelhanças e a sua própria destruição, enquanto ser incapaz de entender o frenético ritmo social a que a vida se desenrola. È facilmente apreendida a intima e frágil ligação entre todos os homens, resultado da multiplicidade de diferenças religiosas, culturas e linguísticas.
São noventa e seis minutos, sem narração, legenda ou discurso, somente imagens e sons cuidadosamente capturados. Baraka exibe-nos de que forma a raça humana e seus diferentes ciclos de vida estão eternamente vinculados ao ritmo da natureza, fazendo uma surpreendente análise do mundo e de quem nele habita.
Filmado em 152 lugares diferentes, localizados em 24 países, Argentina, Austrália, Brasil, Cambodja, China, Equador, Egipto, França, Hong-Kong, Índia, Indonésia, Irão, Israel, Itália, Japão, Kenya, Kuwait, Nepal, Polónia, Arábia Saudita, Tanzânia, Tailândia, Turquia, e Estados Unidos da América, “Baraka” não tem qualquer história ou enredo. Em vez disso utiliza, não só temas para nos apresentar novas perspectivas, mas também genuínas emoções que nos fazem entrar na mensagem do filme. Não aconselho a visualização deste filme a pessoas confiantes no seu ego, seguras pelo seu egoísmo étnico centralizado, nem com configurações pré-definidas de vida humana ou comportamentos sociais, já que nos é proporcionada uma verdadeira experiência sensitiva e espiritual que leva o telespectador a olhar o mundo de um modo totalmente diferente e de uma forma mais condescendente para com os outros. Baraka permitiu-me ver realidades que nem sonhava existirem, comportamentos sociais que por vezes surgem-nos como irreais, vislumbrar padrões de conectividade cultural, tudo isto num sentido de equilíbrio e proporção de relações internacionais humanas. O meu olhar fugia simplesmente de encontro a outros olhares e caras de pessoas, levando-me a entender a universalidade do espírito humano.
Guardo a triste lembrança de uma enorme lixeira pública na Índia, onde grupos de pessoas procuram incessantemente por qualquer tipo de coisa que lhes permita sobreviver mais um dia, competindo com outros animais. Mulheres e crianças descalças procuram pequenos “tesouros” naquele horrível lugar, onde nenhum ser humano deveria ser obrigado a viver.
Fricke afirma que o objectivo desta obra era ser "uma viagem de redescoberta da própria vida, mergulhando na natureza, na história, no espírito humano e por fim no reino do infinito." Único na sua beleza, sensibilidade e percepção, “Baraka” consegue, ao longo de noventa e seis minutos, e movendo-se na realidade quotidiana de um mundo multifacetado, transmitir-nos uma ideia de tolerância e respeito cultural a que todos deveríamos estar sujeitos.
Mais que uma obra puramente fantasiosa e imaginária, “Baraka” é um filme sobre a vida, um registo sobre a própria Humanidade.
autor: André Silva
quinta-feira, dezembro 11, 2008
Sugestões para um Natal mais quentinho...
Começo com 'Le Grand Bleu - The Big Blue', de Luc Besson.
Segue-se 'Payback', de Brian Helgeland, que para muitos pode parecer apenas mais um filme de acção com o actor/realizador/pastor, Mel Gibson. Mas não o é. Mais do que um banal filme de acção, 'Payback' conta com um cativante e bem conseguido enredo, capaz de nos prender ao ecran. Conta também com mais uma excelente interpretação de Mel Gibson, sempre igual a si mesmo.
Neste fabuloso filme (e é mesmo, não estou com falta de adjectivos), acompanhamos infância e vida adulta de Jacques Mayol e Enzo Molinari (na foto), dois mergulhadores de alta competição, que têm com o mar uma relação mais complexa que a profissional.
Fotografia e interpretações brilhantes.
Segue-se 'Payback', de Brian Helgeland, que para muitos pode parecer apenas mais um filme de acção com o actor/realizador/pastor, Mel Gibson. Mas não o é. Mais do que um banal filme de acção, 'Payback' conta com um cativante e bem conseguido enredo, capaz de nos prender ao ecran. Conta também com mais uma excelente interpretação de Mel Gibson, sempre igual a si mesmo.
Termino com um filme mais recente, 'In Bruges', de Martin McDonagh, com Colin Farrell e Ralph Fiennes.
Todo passado em Bruges, o filme conta-nos a história de um grupo de assassinos bem peculiares. Repleto de humor e situações pouco provaveis, é um excelente filme ao género de 'Snatch'.
É fantástico.
terça-feira, dezembro 09, 2008
O cowboy (Joe) da meia-noite.
Filme disponível na Biblioteca da FDUP
Não classifico filmes com estrelas mas com palavras. Sobre este digo que é perturbante, às vezes doloroso, e que tem brilhantes interpretações. Ah…e recomendo a qualquer um.
Quando o simples visionamento de um filme nos perturba, deixa ensimesmados, deprimidos e, até, de certa maneira, tristes, já temos mais do que o necessário para poder dizer que a obra nos marcou. Não será isso, para além daquela imediata finalidade de “passar um bom bocado”, que procuramos no cinema?
“Midnight Cowboy”. Ou, para quem preferir o título da versão portuguesa, “O cowboy da meia-noite”. O filme marca porque nos abre um vasto leque de perguntas. Se às mesmas sabemos ou não responder é outro problema. O autor destas linhas, que é o Tiago Ramalho, plasma em escrito que não sabe. E por isso está perturbado, ensimesmado, deprimido e, até, de certa maneira, suponho que mesmo o mais despistado dos leitores adivinha a palavra que se seguirá, triste.
Irei relembrar a história para aqueles que a já não recordam. Aos que ainda não viram o filme, salvo se tiverem uma firme aversão à surpresa, recomendo que primeiro o vejam e depois leiam.
Vejamos então, sucintamente: um jovem, de nome Joe, larga o seu pequeno mundo no Texas, onde era lavador de pratos, e parte para Nova Iorque. Projecto: acreditando na sua anacrónica imagem de cowboy, tem em mente viver como prostituto de senhoras que possam pagar os seus serviços, e tudo correrá pelo melhor. Já Ratso é um ladrão de vão de escada. Apesar de estatisticamente poder não ser um sem abrigo, é um pobre coitado que vive num prédio devoluto. Ambos, não obstante alguns pequenos problemas iniciais, acabam por ser o sustentáculo um do outro, vivendo Joe na casa de Ratso. Naturalmente que Joe não foi bem sucedido no seu ofício, pois de outra forma não viveria em tão precárias condições. De facto, em vez de grandes senhoras, aquele que, segundo palavras próprias, não é um verdadeiro cowboy, mas um bom garanhão, acaba por ou não trabalhar ou fazer apenas serviços homossexuais, o que abala o seu sentido estético e, porque não dizê-lo, a masculinidade que faz questão em ostentar. Creio que com isto um quadro geral fica traçado.
O em todo este filme mais parece perturbar é a turbulência das relações humanas: parece ser inegável a forte relação de amor entre Joe e Ratso, esses dois homens sós perdidos na grande metrópole. Mas que amor é esse? Que estranha relação cultivam os dois sujeitos? É curioso como Ratso, ao ver Joe chegar a casa com dinheiro, depois da primeira (que vem a ser única) noite de serviços sexuais remunerados o ataca com violência. Qual a causa dessa hostilidade que leva um homem a violentar o outro – o único – que se preocupa consigo? São dois homens perdidos, duas torres em queda que se apoiam uma na outra num muito frágil equilíbrio. E é uma relação tão forte que leva Joe a cometer um crime (ele que, aparentemente, tanta aversão a tal tinha) para poder levar Ratso à Florida, essa terra com que tanto sonhava, em que nunca chega a pôr os pés mas apenas a depositar o olhar (e a vestir uma camisa com uma palmeira). Pergunto-me então, de novo, sobre que força tão grande é essa que leva aqueles homens a suportarem-se um ao outro. Talvez uma qualquer que transcenda os nossos quadros de compreensão, que só pode ser sentida por homens assim tão sós, tão carentes de uma palavra singela, de um sorriso, ainda que amargurado, ou, tão-somente, de uma sombra pela casa que os lembre que não estão sós no mundo.
Também não consigo deixar de me perguntar sobre qual o valor do sonho: valerá a pena persegui-lo? Aquele rapaz ingénuo, firme na sua inocência, que parte para um espaço que não conhece acreditando no seu visual à John Wayne, que acredita nessa sua ilusão até ao momento em que, abandonando nova Iorque, depara consigo mesmo e, tão somente, não gosta. Basta comparar uma das cenas iniciais em que, ainda na pequena vilória do Texas, garbosamente se arranja para sair de casa, com aquele em que, na viagem para a Florida e depois de comprar um novo vestuário, deita todos os seus velhos pertences ao lixo. Talvez aí morra o Cowboy da Meia Noite do Texas e nasça um novo Joe de Nova Iorque. Há um desconsolo enorme em ver a figura de Joe destruir-se ao longo de todo o filme e, nesse momento em que “volta a si”, vê-lo a ver morrer o seu camarada de vida.
As interpretações dos dois principais actores são notáveis: John Voight tem um ar incrivelmente inocente ao longo de todo o filme; Dustin Hoffman parece um verdadeiro rufia. Comparar esta sua interpretação com a que realiza em “The Graduate” revela toda a sua qualidade. Será mesmo o mesmo, passe a redundância?
Comecei por dizer que este filme abre bastantes perguntas. Abre perguntas e com ela nasce alguma dor. Mas tudo isso dentro da grande felicidade de ver uma grande obra e de efectuarmos uma viagem a uma outra realidade pela câmara de um realizador.
“Midnight Cowboy”. Ou, para quem preferir o título da versão portuguesa, “O cowboy da meia-noite”. O filme marca porque nos abre um vasto leque de perguntas. Se às mesmas sabemos ou não responder é outro problema. O autor destas linhas, que é o Tiago Ramalho, plasma em escrito que não sabe. E por isso está perturbado, ensimesmado, deprimido e, até, de certa maneira, suponho que mesmo o mais despistado dos leitores adivinha a palavra que se seguirá, triste.
Irei relembrar a história para aqueles que a já não recordam. Aos que ainda não viram o filme, salvo se tiverem uma firme aversão à surpresa, recomendo que primeiro o vejam e depois leiam.
Vejamos então, sucintamente: um jovem, de nome Joe, larga o seu pequeno mundo no Texas, onde era lavador de pratos, e parte para Nova Iorque. Projecto: acreditando na sua anacrónica imagem de cowboy, tem em mente viver como prostituto de senhoras que possam pagar os seus serviços, e tudo correrá pelo melhor. Já Ratso é um ladrão de vão de escada. Apesar de estatisticamente poder não ser um sem abrigo, é um pobre coitado que vive num prédio devoluto. Ambos, não obstante alguns pequenos problemas iniciais, acabam por ser o sustentáculo um do outro, vivendo Joe na casa de Ratso. Naturalmente que Joe não foi bem sucedido no seu ofício, pois de outra forma não viveria em tão precárias condições. De facto, em vez de grandes senhoras, aquele que, segundo palavras próprias, não é um verdadeiro cowboy, mas um bom garanhão, acaba por ou não trabalhar ou fazer apenas serviços homossexuais, o que abala o seu sentido estético e, porque não dizê-lo, a masculinidade que faz questão em ostentar. Creio que com isto um quadro geral fica traçado.
O em todo este filme mais parece perturbar é a turbulência das relações humanas: parece ser inegável a forte relação de amor entre Joe e Ratso, esses dois homens sós perdidos na grande metrópole. Mas que amor é esse? Que estranha relação cultivam os dois sujeitos? É curioso como Ratso, ao ver Joe chegar a casa com dinheiro, depois da primeira (que vem a ser única) noite de serviços sexuais remunerados o ataca com violência. Qual a causa dessa hostilidade que leva um homem a violentar o outro – o único – que se preocupa consigo? São dois homens perdidos, duas torres em queda que se apoiam uma na outra num muito frágil equilíbrio. E é uma relação tão forte que leva Joe a cometer um crime (ele que, aparentemente, tanta aversão a tal tinha) para poder levar Ratso à Florida, essa terra com que tanto sonhava, em que nunca chega a pôr os pés mas apenas a depositar o olhar (e a vestir uma camisa com uma palmeira). Pergunto-me então, de novo, sobre que força tão grande é essa que leva aqueles homens a suportarem-se um ao outro. Talvez uma qualquer que transcenda os nossos quadros de compreensão, que só pode ser sentida por homens assim tão sós, tão carentes de uma palavra singela, de um sorriso, ainda que amargurado, ou, tão-somente, de uma sombra pela casa que os lembre que não estão sós no mundo.
Também não consigo deixar de me perguntar sobre qual o valor do sonho: valerá a pena persegui-lo? Aquele rapaz ingénuo, firme na sua inocência, que parte para um espaço que não conhece acreditando no seu visual à John Wayne, que acredita nessa sua ilusão até ao momento em que, abandonando nova Iorque, depara consigo mesmo e, tão somente, não gosta. Basta comparar uma das cenas iniciais em que, ainda na pequena vilória do Texas, garbosamente se arranja para sair de casa, com aquele em que, na viagem para a Florida e depois de comprar um novo vestuário, deita todos os seus velhos pertences ao lixo. Talvez aí morra o Cowboy da Meia Noite do Texas e nasça um novo Joe de Nova Iorque. Há um desconsolo enorme em ver a figura de Joe destruir-se ao longo de todo o filme e, nesse momento em que “volta a si”, vê-lo a ver morrer o seu camarada de vida.
As interpretações dos dois principais actores são notáveis: John Voight tem um ar incrivelmente inocente ao longo de todo o filme; Dustin Hoffman parece um verdadeiro rufia. Comparar esta sua interpretação com a que realiza em “The Graduate” revela toda a sua qualidade. Será mesmo o mesmo, passe a redundância?
Comecei por dizer que este filme abre bastantes perguntas. Abre perguntas e com ela nasce alguma dor. Mas tudo isso dentro da grande felicidade de ver uma grande obra e de efectuarmos uma viagem a uma outra realidade pela câmara de um realizador.
Não classifico filmes com estrelas mas com palavras. Sobre este digo que é perturbante, às vezes doloroso, e que tem brilhantes interpretações. Ah…e recomendo a qualquer um.
*post rectificado perante a correcção da Maria João. Sobre o nome "Ratso" recomenda-se o dito comentário, da mesma menina, senhora, mulher.
segunda-feira, dezembro 01, 2008
Amanhã há filme
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