Texto por: Rita Carvalho
MAMMA ROMA e PIER PAOLO PASOLINI[1]
“Ajudem-me! Doem-me os braços! Porque me puseram aqui? ” Será esta a pergunta-chave de Ettore numa
das últimas, mas também mais inquietante, cenas do filme Mamma Roma. Aqui, Ettore encontra-se deitado em roupa interior,
preso a uma mesa que contém um buraco no centro, bem no sítio onde permite que
a urina verta assertivamente para um balde colocado rigorosa e astuciosamente
em sítio concertado. A transpirar enquanto treme de frio, e depois de toda a
incompreensão e tentativa de libertação (ele bem tentou!), pede que parem, que
o ajudem, promete portar-se bem e termina em acto de desejo: quer apenas que o
levem de volta para onde vivia, para o
sítio onde era pequeno. Mas que sítio seria este? Não seriam certamente os
arredores da grande Roma (o borgate) onde
agora se encontrava, não; seria porventura o campo, que o mesmo é dizer a
simplicidade, julgamos nós. E julgámo-lo não apenas pelos elementos que o filme
nos oferece, mas (e fundamentalmente) pelo que sabemos da vida do realizador.
Pier Paolo Pasolini seria seduzido pela ruralidade e respectivos camponeses,
costumes e dialectos (e veja-se aqui como um mero exemplo a sua poesia escrita
em friulano, cuja tentação para em tal dialecto escrever viria pelo próprio a
ser descrita como “uma espécie de paixão mística, de felibrígio”, que o levaram
a apoderar-se dessa “velha língua”). Porém, avança nessa descrição, “com muita
ingenuidade decidi ser incompreensível e, para tal, escolhi o dialecto
friulano. Era para mim o cúmulo do hermetismo, da obscuridade, da recusa da
comunicação. Ora aconteceu uma coisa que não esperava. O uso deste dialecto
proporcionou-me o gosto da vida e do realismo. Através do friulano aprendi que
as pessoas simples, por meio da sua linguagem, acabam por existir
objectivamente, com todo o mistério do seu carácter camponês”. Aí quererá
Ettore regressar, ao início, a tal existência objectiva (se é que ela terá
de facto existido!), ainda que entre porcos e galinhas que se passeiam no chão
de terra batida, entre a mesa e os convidados de um casamento, início este que
se perde num quotidiano vagueado e sem rumo e do qual nunca mais ouviremos
falar senão no fim.
Ler tal anseio de Ettore, filho adolescente de Mamma
Roma (Anna Magnani, numa ou em mais uma brilhante interpretação) levado para o borgate no auge da sua adolescência,
numa exasperada tentativa de mudar de vida (a dela – (até aí) marginal – e a
dele – potencializando-a, julgava ela, maternalmente), implica
impreterivelmente duas abordagens em si interpenetradas.
A primeira será a consciência de que se trata
Pasolini de um realizador do neo-realismo italiano, ainda que com abundantes
variações do inicial (aquele de Sica, de Rosselini ou de Visconti),
nomeadamente no que concerne à utilização de actores não profissionais não para
tornar as cenas o mais realistas possível, mas antes para que não parecessem
tão reais (e falamos aqui já da introdução no cinema de uma dimensão mística,
mítica e poética), e das significações que daqui devem ser apreendidas.
A segunda será a percepção de que, ainda que Mamma Roma se insira no primeiro período
do cinema de Pasolini, iniciado com Accattone,
período esse tão veemente associado ao tal neo-realismo de que falávamos, seria
limitativo querer ver no filme o objectivo de uma mera apresentação da
realidade – e leia-se em “realidade” a miserabilidade e marginalidade vivida no
borgate; leia-se ali a vida vivida à
margem dos valores burgueses espácio e temporalmente situados, na Itália de
1962, conjugada com a persistente, generosa e bela tentativa da busca de alguma
felicidade, senão da felicidade ela mesma (e note-se a lindíssima cena em que a
nossa Mamma Roma ensina ao seu pequeno Ettore uns quantos passos de dança no
quarto do pequeno apartamento que orgulhosamente conseguiu para ambos; ou dos
esforços que Mamma Roma faz para se integrar, a ela e ao seu).
Na verdade, existirá (e existe!) uma crítica
suficientemente implícita para que facilmente perceptível à Itália e respectiva
sociedade dos tempos a revelar. Não fosse de Pasolini que estivéssemos a falar!
Tido por muitos como o maior intelectual da Itália do pós II Guerra Mundial,
homossexual, marxista e ateu, com uma das mais provocantes vozes de discórdia
político-cultural (seja do período do fascismo, seja do pós-guerra a que nos
queiramos referir), ingénuo seria não perceber aqui a aversão pelas opções
económico-políticas do pós-guerra, com base, claro está, no capitalismo, nas
quais Itália se apoiava para suplantar os traumas de um regime fascista, de uma
guerra e consecutivo processo de reconstrução. E percebemos isso mesmo na mota
oferecida ao filho, como se o presente o fosse salvar do (des)rumo em que se
encontrava (eles bem o tentaram, naquela cena linda para morrer em que nela viajam, amarrados, como se assim
estivesse bem, como se bastasse); mas percebemo-lo ainda melhor no facto de
Mamma Roma regressar sucessivamente à sua vida anterior de prostituta: se, por
um lado a sua força quer representar um país que se esforça por se erguer e ver
um futuro próspero (ou algum, pelo menos!), por outro, ela e a decadência que a
envolve pretendem mostrar que aquele não pode ser o percurso a seguir, ou a
marginalidade em que está enrolada não terá fim, tal como as potencialidades do
seu filho não verão a luz do dia (a não ser através daquela pequena janela, mas aí…). Onde, em tal processo, ficam
estas pessoas, pergunta-se. Ver em Anna Magnani somente a denúncia de uma mãe a
lutar pela vida de seu filho, ainda que dolorosamente belo, não basta. Aliás,
Mark Cousins veio afirmar “Mamma Roma is herself and the city”[2]
com algum propósito.
E regressando agora àquele início já mencionado, e à introdução de um cariz místico e poético
neste que é, ainda assim, um filme com sérias intenções neo-realistas, falemos pois
da introdução no cinema de um assumido ateu do questionar do papel da posição
das crenças e do papel da Igreja e da herança cristã (e de como esse carácter
místico vem inclusive acrescentar ao realismo com que Pasolini nos apresenta as
pessoas e a sociedade nos seus filmes, ou seja, bem situadas). Onde queremos
chegar: à cena final. Quando o mundo desaba e todos os esforços realizados
fracassam ou, pior, corrompem ainda mais as almas simples e modestas como a de
Ettore poderia ter sido, uma imagem: lá ao longe, uma cúpula de uma Igreja. Uma
questão: servirá ela de uma réstia de salvação, ou de elemento de
desacreditação total?
Para um ateu, permitir que tal questão permanecesse
no ar poderia soar estranho. Mas não para Pasolini que um dia afirmaria “I may
be an unbeliever, but I am an unbeliever who has a nostalgia for a belief”[3]. Controverso
porque criticado por todas as frentes (pela Igreja católica, pelas suas opções
sexuais e políticas, e por marxistas, pela introdução nas suas obras de
elementos tão religiosos ou, melhor, místicos – o maior exemplo disso estava
ainda por vir, precisamente em 1964 com o Evangelho
Segundo São Mateus), apresentou-se na verdade situado acima de qualquer uma
dessas posições. Não teve nunca problemas em fazer distinções entre crença e
herança histórica, ou ir ainda mais além, e diferenciar a crença da nostalgia por uma crença. Às críticas
responde “Que mais dizer para desencorajar esses inquisidores importunos? Não
gosto do catolicismo, como instituição (…) porque a minha religião, ou antes o
meu espírito religioso (…) se sente ofuscado. Resta esse cripto-cristianismo
com que os mais agressivos me estigmatizam, como tara vergonhosa. Dir-lhes-ei
que é difícil para um Ocidental não ser cristianizado, a não ser que seja mesmo
cristão crente. Com mais razão para um italiano. Gostaria de evitar dizer, por
demasiado banal, que sou – culturalmente – cristão, e que não escolhi,
geograficamente falando, a minha situação, desse ponto de vista. Quanto à visão
religiosa que possamos ter do mundo – tanto eles como eu –, ela dispensa o
idealismo cristão. Tenho tendência para um certo misticismo, para uma
contemplação mística do mundo, é sabido. (…) uma irresistível necessidade de
admirar os homens e a natureza, de reconhecer a profundidade onde outros apenas
pressentem a aparência inanimada, mecânica das coisas. (…)” E sobre Deus: “Pela
minha parte, lamento muito, mas não acredito. (…) Entre mim e a realidade
histórica criou-se a espessura do mito”.
Pasolini, porque tão controverso, polémico, e
desinserido, depois de muitas acusações injuriosas, acabou assassinado em 1975,
com vários ferimentos no corpo e o rosto desfigurado. Ficaram os seus textos,
que de tão bem construídos quase nos fazem cair na falácia do “agora já não se
faz disto!”, as pinturas e o seu cinema, aquilo que seria para ele um conjunto
de cortes e reorganizações da vida em si e das variadas dimensões que a compõe,
do mais real, ao mais poético e de que Mamma
Roma será um estonteante exemplo.
[1] Todas as
citações que surjam ao longo do texto do próprio Pasolini são retiradas de um
livro onde se compilaram algumas das suas entrevistas: “Pier Paolo Pasolini – As Últimas Palavras de um Ímpio (conversas com
Jean Duflot)”, Distri Editora, 1985.
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