sábado, abril 20, 2013

MAMMA ROMA E PIER PAOLO PASOLINI

Aqui fica a crítica distribuída na sessão do Mamma Roma, de Pier Paolo Pasolini, no passado dia 11 de Abril.

Texto por: Rita Carvalho
MAMMA ROMA e PIER PAOLO PASOLINI[1]

“Ajudem-me! Doem-me os braços! Porque me puseram aqui? ” Será esta a pergunta-chave de Ettore numa das últimas, mas também mais inquietante, cenas do filme Mamma Roma. Aqui, Ettore encontra-se deitado em roupa interior, preso a uma mesa que contém um buraco no centro, bem no sítio onde permite que a urina verta assertivamente para um balde colocado rigorosa e astuciosamente em sítio concertado. A transpirar enquanto treme de frio, e depois de toda a incompreensão e tentativa de libertação (ele bem tentou!), pede que parem, que o ajudem, promete portar-se bem e termina em acto de desejo: quer apenas que o levem de volta para onde vivia, para o sítio onde era pequeno. Mas que sítio seria este? Não seriam certamente os arredores da grande Roma (o borgate) onde agora se encontrava, não; seria porventura o campo, que o mesmo é dizer a simplicidade, julgamos nós. E julgámo-lo não apenas pelos elementos que o filme nos oferece, mas (e fundamentalmente) pelo que sabemos da vida do realizador. Pier Paolo Pasolini seria seduzido pela ruralidade e respectivos camponeses, costumes e dialectos (e veja-se aqui como um mero exemplo a sua poesia escrita em friulano, cuja tentação para em tal dialecto escrever viria pelo próprio a ser descrita como “uma espécie de paixão mística, de felibrígio”, que o levaram a apoderar-se dessa “velha língua”). Porém, avança nessa descrição, “com muita ingenuidade decidi ser incompreensível e, para tal, escolhi o dialecto friulano. Era para mim o cúmulo do hermetismo, da obscuridade, da recusa da comunicação. Ora aconteceu uma coisa que não esperava. O uso deste dialecto proporcionou-me o gosto da vida e do realismo. Através do friulano aprendi que as pessoas simples, por meio da sua linguagem, acabam por existir objectivamente, com todo o mistério do seu carácter camponês”. Aí quererá Ettore regressar, ao início, a tal existência objectiva (se é que ela terá de facto existido!), ainda que entre porcos e galinhas que se passeiam no chão de terra batida, entre a mesa e os convidados de um casamento, início este que se perde num quotidiano vagueado e sem rumo e do qual nunca mais ouviremos falar senão no fim.

Ler tal anseio de Ettore, filho adolescente de Mamma Roma (Anna Magnani, numa ou em mais uma brilhante interpretação) levado para o borgate no auge da sua adolescência, numa exasperada tentativa de mudar de vida (a dela – (até aí) marginal – e a dele – potencializando-a, julgava ela, maternalmente), implica impreterivelmente duas abordagens em si interpenetradas.

A primeira será a consciência de que se trata Pasolini de um realizador do neo-realismo italiano, ainda que com abundantes variações do inicial (aquele de Sica, de Rosselini ou de Visconti), nomeadamente no que concerne à utilização de actores não profissionais não para tornar as cenas o mais realistas possível, mas antes para que não parecessem tão reais (e falamos aqui já da introdução no cinema de uma dimensão mística, mítica e poética), e das significações que daqui devem ser apreendidas.

A segunda será a percepção de que, ainda que Mamma Roma se insira no primeiro período do cinema de Pasolini, iniciado com Accattone, período esse tão veemente associado ao tal neo-realismo de que falávamos, seria limitativo querer ver no filme o objectivo de uma mera apresentação da realidade – e leia-se em “realidade” a miserabilidade e marginalidade vivida no borgate; leia-se ali a vida vivida à margem dos valores burgueses espácio e temporalmente situados, na Itália de 1962, conjugada com a persistente, generosa e bela tentativa da busca de alguma felicidade, senão da felicidade ela mesma (e note-se a lindíssima cena em que a nossa Mamma Roma ensina ao seu pequeno Ettore uns quantos passos de dança no quarto do pequeno apartamento que orgulhosamente conseguiu para ambos; ou dos esforços que Mamma Roma faz para se integrar, a ela e ao seu).

Na verdade, existirá (e existe!) uma crítica suficientemente implícita para que facilmente perceptível à Itália e respectiva sociedade dos tempos a revelar. Não fosse de Pasolini que estivéssemos a falar! Tido por muitos como o maior intelectual da Itália do pós II Guerra Mundial, homossexual, marxista e ateu, com uma das mais provocantes vozes de discórdia político-cultural (seja do período do fascismo, seja do pós-guerra a que nos queiramos referir), ingénuo seria não perceber aqui a aversão pelas opções económico-políticas do pós-guerra, com base, claro está, no capitalismo, nas quais Itália se apoiava para suplantar os traumas de um regime fascista, de uma guerra e consecutivo processo de reconstrução. E percebemos isso mesmo na mota oferecida ao filho, como se o presente o fosse salvar do (des)rumo em que se encontrava (eles bem o tentaram, naquela cena linda para morrer em que nela viajam, amarrados, como se assim estivesse bem, como se bastasse); mas percebemo-lo ainda melhor no facto de Mamma Roma regressar sucessivamente à sua vida anterior de prostituta: se, por um lado a sua força quer representar um país que se esforça por se erguer e ver um futuro próspero (ou algum, pelo menos!), por outro, ela e a decadência que a envolve pretendem mostrar que aquele não pode ser o percurso a seguir, ou a marginalidade em que está enrolada não terá fim, tal como as potencialidades do seu filho não verão a luz do dia (a não ser através daquela pequena janela, mas aí…). Onde, em tal processo, ficam estas pessoas, pergunta-se. Ver em Anna Magnani somente a denúncia de uma mãe a lutar pela vida de seu filho, ainda que dolorosamente belo, não basta. Aliás, Mark Cousins veio afirmar “Mamma Roma is herself and the city”[2] com algum propósito.   

E regressando agora àquele início já mencionado, e à introdução de um cariz místico e poético neste que é, ainda assim, um filme com sérias intenções neo-realistas, falemos pois da introdução no cinema de um assumido ateu do questionar do papel da posição das crenças e do papel da Igreja e da herança cristã (e de como esse carácter místico vem inclusive acrescentar ao realismo com que Pasolini nos apresenta as pessoas e a sociedade nos seus filmes, ou seja, bem situadas). Onde queremos chegar: à cena final. Quando o mundo desaba e todos os esforços realizados fracassam ou, pior, corrompem ainda mais as almas simples e modestas como a de Ettore poderia ter sido, uma imagem: lá ao longe, uma cúpula de uma Igreja. Uma questão: servirá ela de uma réstia de salvação, ou de elemento de desacreditação total?

Para um ateu, permitir que tal questão permanecesse no ar poderia soar estranho. Mas não para Pasolini que um dia afirmaria “I may be an unbeliever, but I am an unbeliever who has a nostalgia for a belief”[3]. Controverso porque criticado por todas as frentes (pela Igreja católica, pelas suas opções sexuais e políticas, e por marxistas, pela introdução nas suas obras de elementos tão religiosos ou, melhor, místicos – o maior exemplo disso estava ainda por vir, precisamente em 1964 com o Evangelho Segundo São Mateus), apresentou-se na verdade situado acima de qualquer uma dessas posições. Não teve nunca problemas em fazer distinções entre crença e herança histórica, ou ir ainda mais além, e diferenciar a crença da nostalgia por uma crença. Às críticas responde “Que mais dizer para desencorajar esses inquisidores importunos? Não gosto do catolicismo, como instituição (…) porque a minha religião, ou antes o meu espírito religioso (…) se sente ofuscado. Resta esse cripto-cristianismo com que os mais agressivos me estigmatizam, como tara vergonhosa. Dir-lhes-ei que é difícil para um Ocidental não ser cristianizado, a não ser que seja mesmo cristão crente. Com mais razão para um italiano. Gostaria de evitar dizer, por demasiado banal, que sou – culturalmente – cristão, e que não escolhi, geograficamente falando, a minha situação, desse ponto de vista. Quanto à visão religiosa que possamos ter do mundo – tanto eles como eu –, ela dispensa o idealismo cristão. Tenho tendência para um certo misticismo, para uma contemplação mística do mundo, é sabido. (…) uma irresistível necessidade de admirar os homens e a natureza, de reconhecer a profundidade onde outros apenas pressentem a aparência inanimada, mecânica das coisas. (…)” E sobre Deus: “Pela minha parte, lamento muito, mas não acredito. (…) Entre mim e a realidade histórica criou-se a espessura do mito”.

Pasolini, porque tão controverso, polémico, e desinserido, depois de muitas acusações injuriosas, acabou assassinado em 1975, com vários ferimentos no corpo e o rosto desfigurado. Ficaram os seus textos, que de tão bem construídos quase nos fazem cair na falácia do “agora já não se faz disto!”, as pinturas e o seu cinema, aquilo que seria para ele um conjunto de cortes e reorganizações da vida em si e das variadas dimensões que a compõe, do mais real, ao mais poético e de que Mamma Roma será um estonteante exemplo. 







[1] Todas as citações que surjam ao longo do texto do próprio Pasolini são retiradas de um livro onde se compilaram algumas das suas entrevistas: “Pier Paolo Pasolini – As Últimas Palavras de um Ímpio (conversas com Jean Duflot)”, Distri Editora, 1985.
[2] In Sight&Sound, March 2013, Volume 23, Issue 3, p. 41
[3] In Sight&Sound, March 2013, Volume 23, Issue 3, p. 39

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