segunda-feira, outubro 08, 2012

Crítica "F, de Fraude"


Aqui fica a crítica a F, DE FRAUDE (Orson Welles, 1972), pelo André Guerreiro.



Orson Welles catalogou o filme F For Fake de “a new kind of film”, e podemos perceber porquê, quando tentamos cometer o perigoso acto de tentar rotular de forma padrão este filme. Podemos atender ao facto de cada apropriação da realidade na forma de celuloide ser um tipo de mentira, que a própria essência do cinema é ser uma ilusão de realidade, por mais que se tente aproximar desse absoluto. Ser mais que um afloramento artificial de uma realidade que não pode ser encapsulada porque limitada a um tempo próprio, apenas podendo ser reinventada, reinterpretada pelo indivíduo, com todo o esbatimento e valoração que a percepção de cada um selecciona. E é exactamente por esse facto,  pelo facto da realidade se tornar apenas arrogante sinónimo de percepção individual quando atinente à valoração de algo tão indeterminado como a arte, dificilmente chamaremos a F For Fake um documentário. Pela forma livre como desconstrói o que essencialmente podemos chamar de todo um grande truque de magia, porque combina elementos verdadeiros (como será a carne dos participantes e os supostos factos reais, por na consciência colectiva serem dados como provados) e ficção, ilusão, mentiras, a manipulação de tudo o que vemos, mesmo desses factos verdadeiros. E é assim mesmo que começa o filme. Orson Welles, actor na pele de um mágico, diringindo-se a uma criança (que poderá simbolizar a clássica ingenuidade do espectador permeável a qualquer mentira que lhe possam impingir quando exposta num determinado formato artístico) demonstra o seu poder de transformar a realidade, na forma de uma chave que dá lugar a uma moeda, voltando a ser uma chave. Todo o tipo de metáforas poderiam ser diagnosticadas nesta pequena introdução, embora Orson Welles nos diga que a “chave não é um símbolo”. A chave, que mereceu tanto ênfase, e que tanto focamos a nossa atenção, embora distraídos pelos sucessivos cortes e mudanças de planos, demonstra-nos exactamente a exagerada tendência de imbuir simbologia num mero objecto, que pensamos representar algo mais que a sua simples existência objectiva. Tal processo de preencher um vazio com um exagero de significado, e a facilidade com que a nossa percepção é conduzida por uma outra visão, sem questionar, é importante para as questões que mais tarde serão colocadas em relação à arte, e à sua validade e seu mercado, que são controlados também pela visão de inquestionável autoridade, na figura dos experts. Em ultima análise, ocorre o mesmo com o cinema, pois a edição, mecanismo consubstanciado nos rápidos e fluidos cortes que funcionam como um mosaico onde as peças apenas são unidas pela volátil argamassa da realidade, funcionam como um truque de magia. A nossa visão e posterior entendimento são manipulados, sendo-nos permitido apenas uma visão parcial do que está a acontecer/aconteceu realmente. Na cena inicial, vemos o truque de magia na sua forma perfeita, tal como mais tarde veremos os factos que formam a história propriamente dita, mas Welles permite-nos ver a moldura dessa realidade: a camara, a equipa de produção, as luzes, a tela branca. O próprio cinema é um truque, mas os objectos e os factos não deixam de existir, tal como a chave não perdeu a sua materialidade.

Embora todas estas questões sejam imediatamente visíveis nos primeiros minutos de filme, a principal camada cutânea deste camaleónico filme em termos de guião é o documentar da vida de o provavelmente maior falsificador de arte do século XX, Elmyr de Hory (sendo este apelido também camaleónico, se entendermos a justiça e a polícia como o predador).  Elmyr, emigrante hungaro ficou conhecido por forjar na perfeição quadros de mestres como Picasso, Matisse, ou Modigliani, nunca tendo sido reconhecido nos trabalhos em que assina o próprio nome. Talentoso ao ponto de conseguir passar-se por uma miríade de artistas dignos de eterno reconhecimento, mas nunca reconhecido como um artista de direito próprio. Pode Elmyr ser considerado um artista? A noção de artista e a de nome e reconhecimento do mesmo parecem ser indissociáveis. Esta questão dá origem ao momento mais pungente e honesto do filme, em que Welles reflecte quase como se suspirasse e a sua própria voz, antes teatral e forte, se vergasse perante a realização do poder do homem de transcender a sua finitude. E que esta intemporalidade da obra não perde significado por não ser acompanhada pela herança de um nome. “Maybe a man’s name doesn’t matter all that much”, quando a arte constitui mais a prova da grandeza do Homem que de um homem em particular, quando o detalhe desaparece e só existirem ecos do que um dia será, inevitavelmente, um passado distante.

Tal como o nome dos trabalhadores da catedral nunca será lembrado, quando a memória e nome do falsificador desaparecer, o seu legado continuará a existir. Mesmo que não tenha o seu nome, o real engolirá o que outrora foi mentira e fraude, e um Modigliani de Elmyr será apenas um Modigliani.Nunca deixando de ser Elmyr, mas de tal ninguém saberá, como se de um truque que o mágico nunca revelou se tratasse. A fraude e a mentira só o serão se detectadas, e é tão fácil enganar quem está habituado a ter razão (como o espectador que não questiona, e o expert que não se concede a falhar), como provam os minutos finais do filme. A questão torna-se, então: Essa simples detecção provoca o retirar da obra do pedastal do que lícito ser arte? 

1 comentário:

Anónimo disse...

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