Aqui fica a crítica a F, DE FRAUDE (Orson Welles, 1972), pelo André Guerreiro.
Orson Welles catalogou o filme F For Fake de “a new kind of film”, e
podemos perceber porquê, quando tentamos cometer o perigoso acto de tentar
rotular de forma padrão este filme. Podemos atender ao facto de cada apropriação
da realidade na forma de celuloide ser um tipo de mentira, que a própria
essência do cinema é ser uma ilusão de realidade, por mais que se tente
aproximar desse absoluto. Ser mais que um afloramento artificial de uma
realidade que não pode ser encapsulada porque limitada a um tempo próprio,
apenas podendo ser reinventada, reinterpretada pelo indivíduo, com todo o
esbatimento e valoração que a percepção de cada um selecciona. E é exactamente
por esse facto, pelo facto da realidade
se tornar apenas arrogante sinónimo de percepção individual quando atinente à
valoração de algo tão indeterminado como a arte, dificilmente chamaremos a F
For Fake um documentário. Pela forma livre como desconstrói o que
essencialmente podemos chamar de todo um grande truque de magia, porque combina
elementos verdadeiros (como será a carne dos participantes e os supostos factos
reais, por na consciência colectiva serem dados como provados) e ficção,
ilusão, mentiras, a manipulação de tudo o que vemos, mesmo desses factos
verdadeiros. E é assim mesmo que começa o filme. Orson Welles, actor na pele de
um mágico, diringindo-se a uma criança (que poderá simbolizar a clássica
ingenuidade do espectador permeável a qualquer mentira que lhe possam impingir
quando exposta num determinado formato artístico) demonstra o seu poder de
transformar a realidade, na forma de uma chave que dá lugar a uma moeda,
voltando a ser uma chave. Todo o tipo de metáforas poderiam ser diagnosticadas
nesta pequena introdução, embora Orson Welles nos diga que a “chave não é um símbolo”.
A chave, que mereceu tanto ênfase, e que tanto focamos a nossa atenção, embora
distraídos pelos sucessivos cortes e mudanças de planos, demonstra-nos
exactamente a exagerada tendência de imbuir simbologia num mero objecto, que
pensamos representar algo mais que a sua simples existência objectiva. Tal
processo de preencher um vazio com um exagero de significado, e a facilidade
com que a nossa percepção é conduzida por uma outra visão, sem questionar, é
importante para as questões que mais tarde serão colocadas em relação à arte, e
à sua validade e seu mercado, que são controlados também pela visão de inquestionável
autoridade, na figura dos experts. Em ultima análise, ocorre o mesmo com o
cinema, pois a edição, mecanismo consubstanciado nos rápidos e fluidos cortes que
funcionam como um mosaico onde as peças apenas são unidas pela volátil
argamassa da realidade, funcionam como um truque de magia. A nossa visão e
posterior entendimento são manipulados, sendo-nos permitido apenas uma visão
parcial do que está a acontecer/aconteceu realmente. Na cena inicial, vemos o
truque de magia na sua forma perfeita, tal como mais tarde veremos os factos
que formam a história propriamente dita, mas Welles permite-nos ver a moldura
dessa realidade: a camara, a equipa de produção, as luzes, a tela branca. O
próprio cinema é um truque, mas os objectos e os factos não deixam de existir,
tal como a chave não perdeu a sua materialidade.
Embora todas estas questões sejam imediatamente visíveis nos primeiros
minutos de filme, a principal camada cutânea deste camaleónico filme em termos
de guião é o documentar da vida de o provavelmente maior falsificador de arte
do século XX, Elmyr de
Hory (sendo este apelido também camaleónico, se entendermos a justiça e a
polícia como o predador). Elmyr,
emigrante hungaro ficou conhecido por forjar na perfeição quadros de mestres
como Picasso, Matisse, ou Modigliani, nunca tendo sido reconhecido nos
trabalhos em que assina o próprio nome. Talentoso ao ponto de conseguir
passar-se por uma miríade de artistas dignos de eterno reconhecimento, mas
nunca reconhecido como um artista de direito próprio. Pode Elmyr ser
considerado um artista? A noção de artista e a de nome e reconhecimento do
mesmo parecem ser indissociáveis. Esta questão dá origem ao momento mais
pungente e honesto do filme, em que Welles reflecte quase como se suspirasse e
a sua própria voz, antes teatral e forte, se vergasse perante a realização do
poder do homem de transcender a sua finitude. E que esta intemporalidade da
obra não perde significado por não ser acompanhada pela herança de um nome. “Maybe
a man’s name doesn’t matter all that much”, quando a arte constitui mais a
prova da grandeza do Homem que de um homem em particular, quando o detalhe
desaparece e só existirem ecos do que um dia será, inevitavelmente, um passado
distante.
Tal como o nome dos trabalhadores da catedral nunca será lembrado,
quando a memória e nome do falsificador desaparecer, o seu legado continuará a
existir. Mesmo que não tenha o seu nome, o real engolirá
o que outrora foi mentira e fraude, e um Modigliani de Elmyr será apenas um
Modigliani.Nunca deixando de ser Elmyr, mas de tal ninguém saberá, como se de
um truque que o mágico nunca revelou se tratasse. A fraude e a mentira só o
serão se detectadas, e é tão fácil enganar quem está habituado a ter razão
(como o espectador que não questiona, e o expert que não se concede a falhar),
como provam os minutos finais do filme. A questão torna-se, então: Essa simples
detecção provoca o retirar da obra do pedastal do que lícito ser arte?
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