sábado, outubro 01, 2011
a última ceia
Viridiana (1961), Luis Buñuel.
Adenda:
É engraçado reparar que quem está ao centro - no original, como é sabido, Jesus Cristo - é, aqui, um dos pedintes, mais precisamente aquele que é... cego. A cegueira como virtude cristã, como modo de fazer justiça (a própria figura contemporânea da Justiça - que remonta à grega Diké - usa, como se sabe, uma venda sobre os olhos) sem olhar a categorias sociais e respectivas posses? Talvez seja uma visão demasiado idílica das coisas, ou não estivéssemos nós a falar de um homem como Buñuel... (o tal que disse: "Graças a Deus, sou ateu")
Adenda da adenda:
Outra proposta: procurando retratar a progressiva degradação da Igreja católica (seus valores e princípios), Buñuel filma os pobres - os esquecidos, os ignorados, os rejeitados, os mal-tratados por uma doutrina conspurcada pela conivência dos seus representantes com o poderio dos mais ricos (nobreza, primeiro; burguesia, depois). E filma-os com duas peculiaridades. Por um lado, com um plano de conjunto, fixo, cujo objecto é decalcado de A Última Ceia (Da Vinci), aspecto extremamente importante por duas razões: logo à partida, por ser um quadro icónico do imaginário cristão; depois, porque se trata da última refeição que Cristo toma com os seus discípulos (entre os quais se encontra Judas - o segundo a contar da direita -, o qual, perdoem-me a memória, não sei neste momento se é o que corresponde ao pedinte que no filme de Buñuel admite já ter traído um amigo, o que merece a reprovação dos restantes), antes de ser preso e crucificado. Também em Viridiana se trata da última refeição - já não a de Cristo (ou a do pedinte cego), mas a última daqueles pobres, pois ao serem surpreendidos com a chegada dos donos da casa, serão inevitalvemente expulsos.
A segunda peculiaridade prende-se com o facto de, sendo os "discípulos" aqui filmados os indigentes, os desgraçados, o cenário - de fausto, abundância, opulência - em que são enquadrados contrasta violentamente (diríamos mesmo: miseravelmente) com a sua condição. Donde a ideia de degradação por que começámos: luxúria (espaço), pobreza (homens), hipocrisia (doutrina cristã). A ideia ou tese de que uma doutrina, uma filosofia (a cristã) se desvirtuou, se enlameou em virtude do "esquecimento" a que os seus pregadores votaram as suas ideias originais ("puras", neste sentido) de amor ao próximo e solidariedade, trocando-as por ambições materialistas, de riqueza e ostentação. Chegados a este estado das coisas, Buñuel põe as coisas no seu lugar (ou de pernas para o ar, conforme a perspectiva...): é aos pobres, e já não aos privilegiados do costume, que cabe uma noite de abundância e de um pantagruélico prazer; e, por isso, é com regozijo (ou, pelo menos, foi para mim...) que assistimos a esta comovente cena: cena em que os pobres, ali reunidos, com todas as suas virtudes e defeitos (os mesmos que existem em todos nós, e esta é uma lição central do filme), se lambuzam com um magnífico banquete, como que ajustando contas com o mundo injusto em que se inserem, tão avesso aos valores cristãos que o regem (ou que regem concretamente aquele lugar, Espanha). Mas, como os pobres são pobres - expressão de um determinismo/fatalismo que Buñuel tanto evidencia neste filme, nomeadamente na cena em que Jorge compra o cão a um viandante -, essa noite é, apesar de tudo, a última. É, portanto, a primeira e a última...
Não serão presos no sentido propriamente dito, como Cristo, mas sim numa acepção metafórica: depois do banquete, descobertos pelos donos da casa, voltarão às ruas, à fome, à miséria - esta a sua prisão. E quem são os donos da casa, aqueles a quem compete manter tudo no sítio (numa certa ordem natural das coisas)? A resposta não podia ser mais óbvia: eles são Jorge (o burguês, filho bastardo de um rico proprietário) e Viridiana (a freira, representante da Igreja católica), ainda que esta última não seja classicamente alguém de dentro da igreja que trai os valores que apregoa, pelo menos no que toca a ambições materiais (já no que diz respeito à carne e à sexualidade, o filme carrega uma tensão - tão cara a Buñuel - que daria aso a um post dedicado exclusivamente a esse tema...).
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