Todas as escolhas são circunstanciais e esta por mais do que uma razão. Há anos que incluo “As vinhas da ira” na selecção de filmes de temática laboral, embora a classificação seja insuportavelmente redutora. É-o, mas é muito mais: é, entre muitas outras perspectivas, um manifesto político e sindical, uma elegia familiar, uma saga matriarcal, um épico da gente comum perante a adversidade ou um fresco da Dust Bowl ou da Grande Depressão. E por ser tudo isto e muito mais ganhou redobrada actualidade na desgraçada crise que atravessamos. Ainda há dias a BBC News, referia-se-lhe como uma obra profética, um clássico para os dias de hoje, pelo paralelismo da falência institucional da trilogia bancos-empresas-Estado.
Em suma, é uma obra-prima, que resistiu ao tempo do tempo e da técnica. É um cruzamento raríssimo de génio: ao romance maior de John Steinbeck, juntaram -se a imensidão de talento do realizador John Ford, as representações prodigiosas de Jane Darwell ou de John Carradine e o carisma de Henry Fonda. A estes nomes deve, todavia, acrescentar-se um menos conhecido, mas nem por isso menos decisivo: Gregg Toland, o director de fotografia.
Não é seguramente por acaso, que a dramaticidade da escrita de Steinbeck gerou uma série de conhecidos outros filmes (“East of Eden”, “Viva Zapata”, por exemplo) e de títulos literários memoráveis: “A Pérola”, “O Inverno do nosso Descontentamento” ou “A um Deus Desconhecido”. O filme, porém, tem vida própria, bem expressa pela divergência do final, que a opção de Ford ou o pudor dos tempos não mostraram na crueza do livro. A meu ver, no entanto, o filme acabou por envelhecer melhor do que o livro.
Apesar da utilização pedagógica que dele faço, por condensar muitas das questões fundantes do Direito do Trabalho, tais como o papel do trabalho na vida, a legitimidade da propriedade, o conceito de trabalho digno, os efeitos devastadores da precariedade e do desemprego, a existência de working poors, a natureza conflitual da relação laboral, o carácter alimentar do salário, os problemas da intermediação e do recrutamento, a superação do desequilíbrio contratual através da acção colectiva ou até a justificação do direito à greve e do princípio da não substituição de grevistas, a minha adesão emocional às “vinhas da ira” prende-se, sobretudo, com o facto de ser um road movie da provação – “nenhum ser humano aguentaria tanta miséria”, diz um personagem menor - e uma magnífica corporização simbólica das forças e fraquezas humanas: a caminhada inicial de um Tom Joad sozinho na iminência do encontro com o infortúnio, o avô que morre quando desenraizado do seu nativo Oklaoma, a avó que não sobrevive à travessia do deserto, a gravidez de Rosasharn, a Ma – personagem maior do que a vida - que se desfaz da sua história pessoal antes de partir, que se recusa a olhar para trás ou que ampara a sogra morta para fazer prosseguir a família através da fronteira estadual.
Do ponto de vista formal, é uma narrativa que só podia ter sido filmada a preto e branco, pois é, constantemente, uma narrativa de claro-escuro, de desencanto e de esperança, de dureza e ternura, de injustiça e revolta, de solidão e solidariedade, tal como a vida. Espero que confrontados com as belíssimas imagens do filme sintam o murro no estômago que só pode ser dado pela realidade, mesmo quando ela é tão simbolicamente retratada. Segundo consta, este foi, aliás, o propósito de Steinbeck, quando terá referido ao seu editor que fez o possível para “arrasar os nervos” dos leitores. Não sei se conseguiu tão universalmente quanto John Ford.
2 comentários:
A ideia de ser um "road movie da provação" é muito impressiva. O filme acaba por ser exactamente isso!
Só há um ponto que não consegui entender bem: em que medida terá o filme envelhecido melhor do que o livro...
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